26.10.08

Domingo de Clarice, com Clarice, por Clarice

"O processo de escrever é difícil?
Mas é como chamar de difícil
o modo extremamente caprichoso
e natural como uma flor é feita".



Clarice Lispector, Legião estrangeira.

13.10.08

Lendo Caio, sobrevida.



"Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas.

(...)

Deixa eu te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver nascer uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente.

(...)

Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende?"

Trechos de Para uma avenca partindo (O OVO APUNHALADO)


" Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome." (Trechos de Pequenas epifanias)



"e tudo que eu andava fazendo e sendo eu não queria que ele visse nem soubesse, mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo, por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era." (Além do Ponto, em Morangos Mofados)


"Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de "minha vida". Outros fragmentos, daquela "outra vida". De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos." (Trecho de Dois ou três almoços, uns silêncios)



5.10.08

Por uma alegria genuína

Sempre que volto às aulas de criação literária na Estação das Letras, tenho uma espécie de reencontro feliz com a literatura. Especialmente quando as turmas são compostas de pessoas que realmente gostam e se interessam pela escrita. E apenas ela. E só ela.


É de uma alegria quase infantil, o coração descoberto, ver, ouvir e falar com essas pessoas, de profissões tão diversas. Jornalistas, advogados, músicos, engenheiros, professores, psiquiatras, só para citar algumas, e também universitários, estudantes do ensino médio, gente de todas as idades e todos os tipos, que não querem necessariamente publicar um livro, não querem seguir carreira literária, não querem ganhar prêmios, ver os seus nomes impressos e nem tudo o mais que envolve os arredores literários. O que eles querem, então, afinal?


Eles querem escrever.


Sim, apenas isso. E olhe, não é pouco. Há muitos caminhos a serem descobertos a partir desse desejo. Vejo a alegria genuína neles ao descobrirem. Sinto a alegria genuína de estimular e acompanhar essas descobertas. Quando encontro pessoas assim, turmas assim, é uma festa. Uma verdadeira celebração da escrita. Sei que nem todas as turmas são desse jeito. Realmente, é deprimente quando vemos pessoas mais interessadas em afirmar o ego por meio da escrita do que em escrever, mais concentradas em atiçar vaidades e derrubar conquistas alheias do que mergulhar no processo da escrita, que é único, pessoal, intenso e extremamente vulnerável.


Em 2003, fez dez anos que escrevi o conto que marcou, para mim, o início de um caminho mais pessoal na escrita. Escrevo desde pequena, mas a partir deste conto, A hora do galo, comecei a ter mais consciência da linguagem, da textura da escrita, do ritmo, do que é buscar uma voz singular. Em 1996, este conto foi premiado em um concurso da RioArte. De 1993 a 1996, escrevi outros contos, tentando encontrar a minha voz, tentando escrever e apenas isso. Em 1996, questões pessoais, a falta de tempo, a incerteza em assumir a escrita de um livro, a doação do tempo necessário da vida para isso (não há ilusões: se você não é rico ou algo parecido, o tempo para escrever um livro não existe, ele precisa ser cavado no cotidiano. Ele precisa ser retirado de algum lugar), e tantas outras dúvidas me afastaram da escrita. Estava me formando em Letras e em Teatro, e dois futuros incertos me pesavam. Um amigo então me falou do concurso, e nem pensei em participar. Me inscrevi no último dia, com o pensamento místico de que o resultado daquele concurso seria um sinal para mim. Apenas isso, um sinal. Eu não estava pensando em "vitória", em nada disso. Naquele momento de escolhas e definições, eu apenas precisava desesperadamente saber se o meu amor pela literatura era de alguma forma correspondido. Se não era platônico, com tinham sido outros amores. Como a música, como até o teatro parecia ser. Então, quando saiu o resultado e o meu conto foi premiado, foi muito mais do que qualquer vitória, mais do que ter o sentimento de que ali havia um caminho, foi como ouvir, num sussurro, "eu também". Podia ser um amor bandido, esquisito, incerto, repleto de inseguranças e expectativas, mas ele existia. E, às vezes, só saber que o amor existe já basta.


Claro que se o conto não tivesse sido premiado, eu continuaria a escrever, e cedo ou tarde viriam outros sinais para as minhas dúvidas e angústias. Mas era como se eu tivesse forçado o destino... Se eu contar até dez e uma mulher grávida virar a esquina... se hoje fizer sol... se o telefone tocar daqui a pouco... se... se... por acaso ou por sorte, aconteceu.

De 1996 a 1998, escrevi e reescrevi os contos pensando em um possível livro. Em 2000, o livro foi publicado. E de lá até hoje, depois de muitas lágrimas, suor e cerveja, a escrita está cada vez mais frequente em meus dias, ganhando pouco a pouco mais espaço e tempo, mais tranquilidade e prazer. E nesse tempo todo, desde que escrevi sem a menor expectativa de entrar no "mercado", anos atrás, até agora que escrevo com a consciência dele, não há a menor dúvida que é a escrita que continua movendo tudo. É a escrita. E só ela. Por isso, a alegria genuína ao encontrar pessoas que escrevem porque escrevem.

A ironia de tudo isso é que, com ilustres exceções, encontro essa alegria genuína com a literatura mais em pessoas que não tem pretensões literárias, não se dizem escritores e não publicam livros. Como eu disse, pessoas das mais diversas profissões. Não vejo essa alegria quando vou a um congresso, não vejo em escritores falando de seus livros e seus processos de criação. Novamente, com ilustres exceções, não vejo nem mesmo um rastro de fagulha. Vejo um bocejo em tudo. Ou um savoir-faire forçado em relação à escrita. É certo que cada um tem seu jeito de lidar com cada coisa. Mas sinto falta de partilhar a alegria e mesmo as angústias de um amor em comum.

Ou talvez hoje eu esteja muito sentimental.

De qualquer forma, Cortázar dizia o seguinte, "Com toda a honestidade, declaro que nas poucas vezes em que precisei ficar em tais sanatórios de literatura voltei para a rua com um enorme desejo de tomar vinho num bar olhando as garotas passando nos ônibus. E a cada dia me parece mais lógico e mais necessário ir à literatura - seja na condição de autor, seja na de leitor - como se vai aos encontros mais essenciais da existência, como se vai ao amor e por vezes à morte, sabendo que fazem parte indissolúvel de um todo e que um livro começa e termina muito antes e muito depois da sua primeira e última palavra".

E como é bom isso.



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25.9.08

Para iluminar o dia

OUTRA RECEITA (Armando Freitas Filho )


Da linguagem, o que flutua
ao contrário do feijão à João
é o que se quer aqui, escrevível:
o conserto das palavras, não só
o resultado final da oficina
mas o ruído discreto e breve
o rumor de rosca, a relojoaria
do dia e do sentido se fazendo
sem hora para acabar, interminável
sem acalmar a mesa, sem o clic
final, onde se admite tudo –
o eco, o feno, a palha, o leve –
até para efeito de contraste
para fazer do peso – pesadelo.
E em vez de pedra quebra-dente
para manter a atenção de quem lê
como isca, como risco, a ameaça
do que está no ar, iminente.

27.8.08

Atrás da estante

Peço desculpas aos meus três hipotéticos e queridos leitores pela ausência das postagens nestes últimos meses. Imaginem que depois de pôr o verdadeiro ponto final no romance, entrei em um estado de exaustão mental e cansaço físico. Especialmente nas mãos, os dedos pediram férias do teclado.

E também há outro motivo, talvez o mais forte: nem sempre há algo a dizer.

O silêncio, então...

Mas não podia deixar de postar aqui a respeito da minha Coluna no Jornal de literatura Rascunho, Atrás da Estante, que fez a sua estréia neste mês de agosto.

A oportunidade feliz de escrever esta coluna causou um rebuliço aqui dentro no momento em que eu não estava operando, mas em pausa.

Há muito tempo, desde que eu comecei a dar aulas, tanto de literatura brasileira como de criação literária, que muitas questões referentes à leitura e à escrita, à vida literária e à crítica me provocam e me instigam. Geralmente, o percurso de volta para casa é preenchido mais com pensamentos do que com a consciência de atravessar a rua, pegar o ônibus, pagar a passagem, depois descer, abrir a porta, entrar. A discussão continuava aqui após a aula, se desdobrando em outros assuntos, travando relações com os textos, as idéias, as experiências dos alunos e com a minha própria experiência.

Então, os dedos começaram a coçar, sem saber para onde ir a princípio. Este blog é o resultado desta coçeira. Um espaço para falar sobre literatura, abordando livremente os seus infinitos aspectos. Uma crônica postada aqui há bastante tempo é outro resultado, O labirinto da estante. Outros posts também. Eu sabia que queria escrever ensaios, mas não ensaios muito acadêmicos, e também não sabia direito ainda o modo em que faria isso. Era só uma vontade, que ficou me rondando por um tempo, à espreita.

Então, lembrei de um trecho da minha dissertação, em que discuti uma questão conceitual, transformando o "escritor tradicional" (termo de Julio Cortázar) e o filósofo Nietzsche em personagens, inserindo-os em determinada situação exemplar para a discussão. Às vezes fazemos sem querer coisas que são sinais e sementes para um caminho posterior. E assim nasceu a vontade de discutir questões literárias por meio de um ensaio-ficcional. E depois de alguns anos roendo e remoendo a vontade, surgiu a oportunidade no Jornal Rascunho, que sempre li e admirei, graças ao seu editor, Rogério Pereira.

A primeira coluna se chama Tiro nas letras, e é sobre o ensino de literatura nas escolas... Tortura que vivi na própria pele, como professora... Para mim, este é um assunto grave e urgente, comentado aqui e ali, mas ainda não discutido o suficiente para se tornar a grande questão que deveria ser.

Aqui vai um trecho da Coluna:


Tiro nas letras


Quando Raul Pompéia suicidou-se com um tiro, aos trinta e dois anos, em uma triste noite de natal, deixando uma controvertida obra composta de novelas, romances e crônicas, não podia prever que um século depois, um rapaz de dezessete anos tiraria um resumo do seu livro Ateneu da mochila, se sentaria na cadeira de uma escola com o jeans surrado de todos os dias, balançaria nervosamente os tênis durante toda a aula, enquanto respondia, valendo um ponto cada, questões desse tipo: a) O escritor naturalista Raul Pompéia morreu de tuberculose. b) O escritor romântico Raul Pompéia era homossexual. c) Raul Pompéia era natural do Rio de Janeiro. d) O escritor Raul Pompéia suicidou-se.

Do mesmo modo, Castro Alves quando escreveu Navio negreiro, aos vinte e um anos, tomado pela densidade poética e pela forte questão humana que envolvia a defesa da emancipação dos escravos, não poderia imaginar que cem anos depois trechos do seu poema seriam impressos na prova de uma matéria chamada Literatura Brasileira, e, muito menos, poderia supor, em seus maiores delírios, que as perguntas feitas a partir de sua obra seriam: 1) O autor deste poema pertence a qual fase do romantismo?, 2) Quais as características do movimento romântico expressas em Castro Alves?


Muito menos Augusto dos Anjos, que falava com a morte tão de perto em seus poemas a ponto de ela ter chegado cedo a sua vida na forma de uma pneumonia fatal, aos trinta anos, não poderia conceber que, dez décadas depois, uma professora em início de carreira, apaixonada desde sempre por seus versos de angústia e espanto, entrou em depressão profunda após uma aula de literatura, na qual por pressão do programa curricular, da carga horária apertada e da data da prova, teve que resumir a obra de seu poeta preferido em duas frases: Os versos mórbidos de Augusto dos Anjos ofenderam a métrica parnasiana e os bons costumes da lírica, ela ditou, trêmula, do livro didático para os alunos. O pessimismo do poeta aliado à ciência acusava a degradação humana por meio de analogias com processos químicos e biológicos, disse, lúgubre. De-gra, o quê, professora?, um aluno perguntou, enquanto copiava. De-gra-da-ção hu-ma-na, repetiu, perplexa, e, naquela noite, queimou em silêncio profundo as cinqüenta cópias do poema O Deus-verme, que havia escolhido e impresso para ler e discutir na aula.



Para ler o restante, acesse a sessão Coluna em www.rascunho.com.br.

23.6.08

Sob o sol

Tão dentro e perto

Um rastro de mundo pousa nas pontas dos dedos

Tão fugidio e certo

escrever marcando territórios internos

onde ficamos

e ao mesmo tempo

nos despedimos deles


passos fundos sob o sol



(Um impulso poético que às vezes me dói)

15.6.08

Tecido Penumbroso

Como posso sofrer porque as coisas pararam? Elas andaram tão estouvadas! Por que não deixá-las dormir agora um pouco? Tudo se aquietou, é noite, o mundo vive pra dentro, cegando-se ao sol do sonho. Preciso um pouco desse conteúdo inóspito, ermo como um quase-nada. Não, não é morte, é uma espécie de lacuna essencial, sem a aparência eterna do mármore, ou, por outro lado, sem as inscrições carcomidas. Pode-se respirar também na contra-vida. Depois então a gente volta para o ritmo; aí já não nos reconheceremos ao espelho explícito, tamanha a qualidade desse tecido penumbroso que provamos.


João Gilberto Noll,
inspiradíssimo em Mínimos, múltiplos, comuns.

9.6.08

Escrever para Tchékhov

O mestre do conto moderno, um dos meus escritores preferidos, (a quem sempre recorro quando preciso de um alento ou conselho, ou quando simplesmente preciso de descanso, como estar entre bons amigos) escreveu inúmeras cartas nas quais refletia, e muito, sobre o processo criativo. Aqui vão algumas reflexões do mestre:

"Não retoques, não buriles demais, sê estouvado e audacioso. A brevidade é irmã do talento".

"Na esfera da psique também são os detalhes que contam. Deus nos livre dos lugares comuns! O melhor de tudo é evitar descrever o estado de espírito das personagens; deve-se fazer com que ele seja apreendido a partir de suas ações...".

"Quanto mais a situação é sentimental, tanto mais frieza é necessária para escrever, e o resultado será mais sentimental. Não convém açucarar".

"Quando escrevo, eu confio inteiramente no leitor, supondo que ele mesmo acrescentará os elementos subjetivos que faltam ao conto (sobre a tendência de escrever e julgar os personagens, 'escrever não é passar sermão', diz Tchékhov)".


"Não sejamos charlatões e vamos deixar claro que nesse mundo ninguém pesca nada. Somemte os imbecis e os charlatões é que sabem e compreendem tudo".

"O bom romancista deve passar ao largo de tudo o que tenha significado transitório".

"Notei também outra lei da naturezas: quanto mais alegre eu vivo, mais sombrio saem meus contos".

20.5.08

O topo da montanha mais alta merece o grito mais contido

Estou há um tempo para dar este grito aqui, mas antes precisei gritar em outros lugares, em casa, bares, no topo de montanhas e na beira de precipícios. É que, afinal e finalmente, após seis longos anos de imersões e interrupções, pesquisas, escritas e reescritas, coloquei o ponto final definitivo no meu romance.

Neste final de processo, algumas emoções, talvez, inevitáveis, vieram à tona frequentemente. A primeira era a ânsia arquejante de chegar ao verdadeiro ponto final, página a página, frase a frase, misto de euforia e tristeza. Quando cheguei na última página, e percebi que era realmente a derradeira, lembrei do processo desses longos anos, e entendi, já havia entendido há tempo, mas entendi de uma forma diferente, que a dificuldade maior deste livro não foi escrevê-lo, mas não escrevê-lo.

Escrever foi um aprendizado constante, sobreviver aos dias inférteis, às páginas inúteis (mas talvez nunca sejam realmente), prazer de descobrir caminhos narrativos desconhecidos para mim, de sentir nos dedos os personagens crescendo e aparecendo mais do que eu havia planejado, de ver a história tomando forma própria, voando acima das pesquisas feitas, estabelecendo atmosferas e texturas que me exigiram um envolvimento íntimo, uma carga pessoal em uma história passada em outro século, emoções e sentimentos que a princípio nada tinham a ver comigo. Mas, ora, como a convivência nos revela. Desde o início, talvez eu desconfiasse, confesso, que havia ali, naquela família e naquelas relações, sentimentos que também me habitavam, de certo modo. E agora, após o ponto final, seis anos de convívio com essas pessoas, com esse universo, descubro ofegante que escrever também pode ser, ou só é, essa amalgáma de ficção e experiência, confluências e imaginação, confissão disfarçada e entendimentos enfim realizados. Independente da história que se conta, da aparente relação (ou não) com o nosso mundo real, a ficção é mais rica do que imagina as nossas referências pessoais, é mais exigente do que se pensa, não se contenta com afinidades, identificações, ou desejos criativos formais e racionalizados, ela se alimenta do que nem podemos desconfiar. Ainda bem, ela arruma a sua forma própria de acontecer. É ela que penetra em nossa sensibilidade, em nossa memória, em nossos afetos, e não ao contrário. Que bom que compreendi isso a tempo, e não tarde demais.



Não escrever foi a parte mais difícil, porque a realidade talvez nunca tenha me chamado tanto, me exigido tanto como nestes seis anos. Chamo de "realidade" neste momento aquilo que nos acontece, que acontece às pessoas ao nosso redor, e que nos exige presença e atenção. Tentei, como pude, conciliar as forças e equilibrar todas as necessidades. Mas é justamente quando a gente acha que encontou algum equilíbrio sobre a terra que ela estremece. É justamente quando os pés tocam o chão que escorregamos. Às vezes me sentava diante do PC com a sensação de que escrevia em meio ao caos. O PC, sólido, enquanto o mundo desabava ao redor. Junto a isso, toda a rotina de trabalho fora da escrita, que também exige atenção de outra ordem, a de sobreviver mês a mês. Enquanto escrevia este livro, a vida nunca foi tão real, a realidade, tão bruta, e a ficção, para quem eu voltava sempre devedora e atrasada, tão necessária.

29.3.08

Um delírio por Moira

Parecia que estava tudo terminado. Do alto do prédio as avenidas. Para cada peça de roupa que tirava, nada mais a vestia. Sentia-se sublime. Submersa.
Sub.
Já tinha lutado todas as guerras, pisado na terra úmida, atravessado o pó e as pedras. Chegara, então, no limite.
Difícil.
Já amou tanta gente.
Todos na família diziam isso : que ela amava demais.
Era muito dada.
Difícil para ela, não ser. Os pés tremiam, gelados. Pés de tantos caminhos, esquecidos no gelo. As mãos também eram abandonadas ao inverno. Mãos que tocavam quase sem textura, frias sobre a superfície.
Áspera lisa macia. Grossa escorregadia dura. Agoniada, quis congelar de vez. Não só as extremidades : tudo. O aluguel vai vencer, a luz vai vencer, o telefone vai. Quis congelar. O papel branco e números. Logo para ela que amava os livros. Os seus pés não esperavam pedras tão agudas. A carteira estava vazia e o banco lhe mandara uma cartinha. Mais juros de não sei o quê. Cheque especial. O centro do seu corpo ardeu da luz mais intensa. Teve um pensamento que – Ah, como tudo aqui é embrutecido ! – foi o que pensou. Um dinheiro que não era seu fora depositado em sua conta. É como areia e vento o diabo que não se vê. Como tudo aqui é –
Pressentiu – uma aridez.
Que difícil.
De tanto calor e frio, ela não pôde mais. Descobriu-se água, descobriu-se vento. Lançou ondas, soprou ventanias. Fez-se mar.
Bebeu do copo uma água sem gosto. Se não arranjasse logo outro emprego, morreria - sim sim morreria. Não tinha cara de pedir nada a ninguém. Era muito dada. No amor. Todo mundo dizia. Mas na fome – o que podia dar ? Era forte, mas se ficasse faminta, só ia querer saber de comer. Não podia sozinha com o seu corpo impedir toda a ressaca.
Só não estava mais fraca por causa dos exercícios. Os nervos, os músculos. Quando parava de mão, via os pés lá em cima. O sangue descendo para mente era bom de sentir. A cabeça perto da terra dava um medo de ver.
Ah, andar, coisa urgente ! correr então ! Ela sabia : bater o currículo – entregar o currículo – esperar então !
Os dedos, já azuis de inverno, tocavam o umbigo. Desde menina ela gostava de mexer no buraquinho macio. Afundava o indicador nele. Gostava de afundar. O umbigo - de fogo e brasa – envolvia – um por um - os dedos. Ela era arquiteta. Sonhava com estruturas. O seu apartamento era frio. O seu cobertor, velho. Tinha muito o que falar para aquela gente do escritório. Reclamavam que ela não sabia datilografar direito, nem fazer um bom cafezinho. Hum. Mentira. Em casa o seu café era bom. O cheiro forte, a cor escura. A palavra limite na boca, a palavra sua. Na gaveta, o diploma. No escritório, o susto :– Sou arquiteta ! , isso era o que tinha para falar para aquela gente. Não falou. Viu que as unhas compridas de tantos anos quebravam pelo caminho, formando um círculo em si mesmas. Ela olhava. Ela ria. Olhava e ria. Juntava os pedaços caídos ao seu redor, formava montes. Viu-se montanha. Começou a chorar.
A pele bebeu as lágrimas. O sal ficou no corpo. Prédios altos sobre as avenidas. Prédios baixos também. A régua e o lápis distantes. Casas próprias para as famílias. Nada mais tinha a dizer. Nascera para desenhar. O risco traçou no papel o seu caminho. Da sua mão deveria vir o abrigo. Mas disseram : recessão, e ela não pôde mais. E, depois, em nenhum outro lugar pôde. Falou em tantas entrevistas, e por tanto tempo. Os olhos ardendo sem ver horizonte. A sensação pequena – não estava pedindo – mas o olhar de todos como se estivesse. O olhar de todos e ela pequena. O sal queimando sob o sol. O sal. Com tanto não ela não pôde. Só pôde isso de bater em botões e servir café. Quis morrer de novo. Mas tinha as prestações e os planos e os seguros para pagar. Tinha também os livros a família um amor e tanta coisa. É que, ás vezes, o mundo devasta tudo como fogo. Mas ela não queria morrer de fogo, preferia morrer de mar.
Olhou a pequena chama em seu ventre. Se deixasse, cresceria no umbigo até incêndio. Tentara também empregos públicos. Agora, tentava diminuir a chama como um isqueiro. Também já tinha lido todos os manuais, passado em todos os concursos. Falaram que a chamariam, um dia, quando houvesse uma vaga. Ela continua esperando. Ainda acredita que deve haver um lugar para a sua urgência. Mas, até lá, se levanta e não sabe quando, para quê, para onde, como. O quê fazer ? Como ?
Difícil.
Depois de secar as lágrimas com os cabelos, cismou de secá-los no fogo. Foi arrancando os fios, enquanto sussurrava um canto. Que coisa. Os cabelos na pequena chama do umbigo. Talvez não consiga pagar o som novo. E a televisão grande. Talvez não. Da janela ela media a distância. 12 x com alguns juros. Talvez não houvesse mais nada que pudesse ter. Teria então o silêncio. Poderia ser o silêncio de dormir, ou o outro. Que coisa. Nem sempre era assim. Tão triste. Tinha algum amor que ela encontrava. E as amigas que a chamavam para se divertir - e beber.
Ah ! ela ia - passava o batom – e ia ! – Gostava de ver gente – de ouvir – de dançar- de viver !
Lá pelas tantas – cantava.
Mas a sua voz parecia vir de fora.
Por dentro, era incêndio.
Queimou parte dos cabelos, queimou os dedos também. De azuis tornaram-se vermelhos. Muito mais bonitos, os dedos vermelhos. Descobriu-se vaidosa. Penteou-se. Sentiu a língua. O cheiro. Pensou no amor que tinha. E estava longe. Queria agora as mãos dele nos seus cabelos. As mãos dele. Em outros lugares também. Arrancou alguns fios. Ai ! como estavam vivos !
Uma vez, amou um homem e o seu corpo. Ele lhe tirava suspiros - ela gostava. O que ela falava - ele entendia. Era só olhar - ele a alcançava. Mas então. Ela não entendeu. Arrancou mais fios. Como poderia entender ? E arrancou mais. Distâncias acontecem. Ela o amava. Ele também. O que foi acontecer ? Uma distância.
Difícil.
Arrancou mais fios. E mais. Fez um ninho. Colocou-o ao redor da chama. Puxou água dos seios para apagar o fogo, puxou vento dentre as pernas para espalhar a brasa. O vento espalhou. A água apagou. Deus, dos homens que a amaram. Alguns souberam como. Outros não. Mas esse. Meu Deus. Ela não entendeu. A luz tornou-se cinza. E tão de repente. Estava tudo bem. Como nunca esteve entre os homens. E então. Houve a transferência. Mas por que para tão longe ? Não falaram o porquê. Falaram outra coisa : que era urgente. Que precisavam dele - lá. Precisam de mim, ele disse. Com urgência. E olhou para ela apaixonado alegre e triste. Mas eu não vou, decidiu. Não quero ir. Vou falar que fico. Vou falar. Mas quando foi dizer. Não disse. Era muito dinheiro. Não teve como dizer - não. Disse sim. Não teve como.
Que coisa. A luz ficou cinza. De restos. Ela tentava conservá-la. Mesmo cinza assim. Esfregava-a no peito. Guardava-a no ventre, para lhe dar forças. Que sobrevivesse, por favor ! Pressionava o corpo para sentir nas mãos o furor e a alegria. Pressionava. O nome dele na boca, as cartas dele pela cama, as roupas dele como travesseiro lençol como pijama para ela fechar os olhos e dormir embrulhada por baixo por cima por–
Que difícil.
Tinham tanto o que falar - um para o outro.
Ouvir o som - não as palavras.
Mas, ás vezes, tudo fugia. Como poeira e pó há pouca luz na sombra. Ah, ela abraçava forte os livros porque eles lhe eram caros. Porque eles lhe diziam coisas que ela não ouvia mais ninguém dizer, ela abraçava os livros.
Os seus desejos não contavam com formas tão brutas. Como tudo aqui é. O aluguel vai vencer, a luz vai vencer, o telefone vai. Também já tinha tentado vender cosméticos. Depois, calcinhas. Já estava cansada de tão em pé nas filas. Toda a luz tornara-se pó como coisa moída. Só lhe restara a alma limpa a solidez que herdara da família. Raiz que finca bem e fundo ninguém tira. Embora tenha vezes em que o vento forte parece, de tão forte, uma força impossível. Assusta. Mas até o fim a raiz resiste inteira. E ela bem sabe que dentro da poeira e seiva permanece a vida. Então, tira da língua a palavra fogo. E antes que soltasse faíscas ela diz : água. Junta o líquido à substância. Com os dedos longos amassa. Um dia, terá que arrumar a casa. Quando. Junta mais água. Transforma o pó em massa. Estica os dedos – as unhas quebradas. Mais pó. Mais água. Amassa.
Um dia, mudará as cortinas os tapetes. Para o seu amor, pintará os lábios as paredes. Talvez esteja amando demais. Nas mãos, a massa brilha. No corpo dela - a estrutura. Ah, e só pode mesmo ser demais ! Com esse amor lhes espera uma filha. Ela sabe. Mas quando. Bate em seu ventre para adquirir consistência. Bate mais. Só quer aquilo que ama. E bate. Só o que acredita. Para. O resto não. A massa brilha. Com o resto não tem paciência. Quer que brilhe mais. Nunca teve. Que brilhe tanto. Quer também que exploda. Massa luz e tudo. No céu. Mira bem para jogar alto. Pois. Quando ele voltar. Ela olha para cima. Mede a distância. Pois. Quando o desenho for de novo o seu risco o seu passo. Aí, sim. Ela olha o céu. Respira. Olha de novo. Levanta as mãos. Mira. Ah, mas está cansada de estrelas –

prefere que a luz exploda em suas próprias mãos.

___________Que coisa ! Quis subir as montanhas, atirar-se lá de cima. Correr correr correr ! Sumir. Mas os pés não obedeceram – ficaram. Da janela, a cidade as pessoas. As pessoas de longe são gente esquisita. Que tanto andam. Parecem sempre as mesmas andando e indo. Lá embaixo, ela andava assim também. Mas que estranho. De longe não viu sentido. Achou melhor não ir. Pois, era preciso ficar. E receber o vento na cara. Sim, porque a verdade começava a sair do esconderijo.

Já molhara as plantas – já lavara a louça – já fizera as compras – já chorara um pouco –
Já fora ao cinema – terminara o romance – arrumara a estante – já estendera a roupa –

De vez em quando, folheava uma revista cheia de poses e truques. E arrancava as folhas com raiva e alegria.

Às vezes, também sentia desfolhar-se.

Em suas mãos, o cheque, o extrato vazio. Na televisão, as palavras estudadas parecem sempre bem ditas. Como ela se afobava com as marcas e os anúncios ! Até que, um dia, cerrou os olhos para a tela grande e bonita. O apresentador do jornal nem teve cara de dizer. Mas as crianças o salário a doença – a crise a violência os índices – a fome o IR a polícia –
Difícil.
Com a mão no controle, ela apontou a TV. Mirava a TV, com a mão apertando o controle. E apertava. Era fácil : liga-desliga, esse canal-aquele. Era só escolher. Mas, tinha vezes que queria e o desgraçado não funcionava. Ou ela mirava de muito longe. Ou não encontrava a posição. Também podia ser a bateria que não –
O corte. Dizem. É preciso. Sentiu queimando as palmas. Para isso não tem censura. Revoltou-se. Na rua as pessoas acreditam - não acreditam. Foi crescendo indignação até fogueira. Na dúvida as pessoas : nada. Resignou-se. Não podia só com o seu corpo impedir a ressaca. Lá fora todo mundo – idem. Parecia que era preciso cegar para ver. No papel, os poucos traços que tinha. Nenhum som e palavra. Que caíssem no chão as lágrimas. A geladeira vazia. Ela não soube como conseguiram o seu endereço. Outro dia, chegou pelo correio. Um cartão. De crédito. Não foi ela que pediu. Mandaram. Olhou para ele, lívida. Quebrou-o em dois para não ter dúvidas. É como sal e doce o diabo que não se vê. Sentiu que queimava à beira de uma morte. É como areia e vento – o diabo -
Pressentiu - ali estava –
que aridez.

O tempo é essa música que se esgota. Língua travada nos dentes. Nem sempre ela precisava das palavras. Era um grave engano esse que sofria. Pois. Tinha sempre a impressão de precisar. Submergia sem conter os fios. Um esticava. Outro se partia. Outro enrolava. Uma vez, ela achou que – ao ficar quieta – ficava triste. Mas não. Também pensava que para ser ouvida tinha que falar. Não sabia que os Deuses trabalham no silêncio.
Quando soube, calou-se e –

nossa.

Sentada no sofá, ela ouviu.

Deixou no prato a carne que não mais comia. Fechou os olhos para consumir-se. Destruiu os vestígios da noite mal dormida. O que não pôde mais jogou no lixo.
Talvez tenha que devolver o som e a TV. Talvez tenha que esquecer o amor e a filha. Meu Deus. Pensou o que seria o que seria o que seria. Desfolhou todos os livros para alcançar o sentido –

______ mas não encontrou atrás das páginas nenhuma pessoa.

_______________________________ Deixou então que as folhas caíssem.


Acompanhou a queda livre como um pequeno vôo. Não lia palavra. Descamava por dentro um mundo. Então, ela viu na folha caída o limite. Já não via mesmo mais o mar.
Tinha fluência em 3 línguas. Todos os que leram o seu currículo sabiam. Mas do que lhe servia isso agora. Bem. Podia dizer eu te amo 3 x diferente para ele. E 3 x volte. E em todas as vezes seria o mesmo amor. Se não errasse a pronúncia.
Se não errasse –
Nos almoços de família, ela comia tanto. Como se pudesse se entupir de tudo que um dia a protegera. Pois. Estava agora descoberta. Se tentasse mais um movimento, poderia até quebrar os ossos. Ficaria mais ágil, se ousasse escapar do próprio corpo, se se erguesse apenas com o que realmente fosse seu. Aí, sim. Dançaria linda ao redor da chama. Com o sangue quente, criaria a sua máscara. Com os dedos longos, pintaria a pele. Teria então a vida inteira como sua. Como só se tem a morte ela teria a vida. Seria seu e apenas seu todo o instante.
O banco forte não sabia. Mas ela é que era especial. Ah, as árvores não se iludem com a pouca luz das lâmpadas. Que coisa. Tirou mel da boca e passou na vista. Na ponta dos pés ficava na mesma altura dos saltos. Quando andava descalça sentia-se baixinha. Não queria preocupar a família os amigos que não mereciam preocupação. Um dia tudo passa como a brisa mais leve. Um dia tudo se –

Viu-se menina azul e violeta. Se ficasse doida seria mais um caso na família. Ajoelharia em seu próprio trono, pisaria em seu próprio manto. O céu que cai sobre as avenidas não sabe. Ela sim, ela sabe – tem muito talento um amor e planos. Achou bom olhar para cima, ter onde cair no chão. O que não pode mais é ficar assim - dependendo de fulano sicrano beltrano. Já era uma coisa depender de si. Um dia já lhe elogiaram tanto. Que os ossos se quebrem. Ela continua a mesma – e sabe : é capaz de suspender a respiração por um minuto inteiro. Ou mais.
Uma vez, deixara o ar levantar a poeira. Deixa agora a poeira invadir os espaços. Um dia, a deixará percorrer a sombra das janelas, abrir o vento das cabeças.

O horizonte não tem meio. Por onde ela pudesse chegar. Tanto faz. Dentro da boca ela sabe – ainda há o que dizer. Talvez nunca diga. Respira. Que coisa. Olhou para os lados, para baixo, para cima. O mar as montanhas a gente. O azul o céu os bichos. A fumaça as lojas as avenidas. Que estranho. Tudo estava ali, e ela dentro. Como da terra a verdura o agrotóxico o inseticida, como da gentileza a alegria a cobrança a medida, como do álcool a limpeza o perfume a bebida , como na boca a língua fala pouco - mais a saliva. Do jeito que a palavra é dita quase nunca é ouvida,
do que jeito que distorcem as coisas – desculpe, como do carro a aventura o conforto a batida - e com o tudo mais que rima não rima – fez-se parte.
Pois.
Tinha que continuar.
Para não perder o hábito, dar uma volta até a esquina. Para não esquecer das coisas, ler o jornal todos os dias. Quando encontrar uma pessoa : sorrir – só um pouquinho – e cumprimentar : boa noite boa tarde bom dia. Não olhar muito nos olhos, nem deixar cair logo o sorriso. Oh, poderia também dizer outras palavras. Sai daqui. Chega. Não enche. Não interessa. Que dane. Que se fo-
Mas. Ela já tinha descoberto o silêncio. E estava quase concreta. Tirou das pernas o último alento. Deixou o fogo e o frio equilibrarem as suas forças. Sentiu as costas se abrindo para o ar. A nuca repleta de nuvens. Pelo espaço atravessam as direções mais impossíveis. Ela pensou na palavra FIM. Logo a sua mente escureceu. Então era isso –

Fora despedida de um bom emprego. Fora despedida também de um emprego qualquer. Recessão, disseram. E ela teve a sensação pequena, como o sal queimando. Os sons ecoam e ela os reconhece. O desenho de infinitas estruturas. Afunda o rosto e os ouvidos na água. Chama os elementos que a fundaram viva. Afinal, era parte. Nunca acaba isso que termina. Ela lambe o que cria, sozinha, sozinha.

Está só. E está – em absoluto - como se não houvesse um amanhã em que não estivesse. Mas é ali – só - que movimenta o mundo. E segue o movimento dentro dele. E conjuga os verbos sem pensar no infinito.

Ah, se chegasse mais uma carta ! Se recebesse logo uma resposta ! etc etc etc ! Mas. Quando. A doce fúria da espera. A sorte.

Ela nunca teve medo. As suas mãos ficam quentes sempre que preciso.
Amanhã é um dia mais lindo porque ela nunca sabe onde –
Ela, que já aceitara os elementos, corre agora com os cabelos em tranças.
Viu-se alto de um rochedo. Reconheceu-se precipício.
Não teve medo. Pensou. Como tudo. Aqui. É.
E precisou chorar. Pois os seus pés não hesitavam mais.
Então –
Era muito dada. Mas na sua família não havia isso – de não ser.
Já amou tanta gente. Inclusive –
Lá pelas tantas – cantava.
Uma vez, chorou um pouco aos quatro ventos. Pois. Ansiava pelo chão. Era mulher marrom e negra. Branca de sonhos. Vermelha também na carne e no sangue. Que coisa. Lá fora a distância. Por dentro também. Como a língua fala pouco. E então. Nunca teve medo. Pensou. Quando. Mas o teto a sua frente parecia uma parede a mais e a janela –
De todas as coisas, ela só queria encontrar a palavra certa para isso : a vista. Para isso tudo que sentia – de ver. Mas pressentiu - como aqui tudo é ! Tanto. Não quis mais esperar que amanhecesse para começar o dia. Lá pelas tantas, ela já sabia. Claro. Os cabelos vão crescer com o tempo. E com o tempo tudo vai –

1.3.08

Canto de Cecília para um sábado de chuva



Murmúrio


Traze-me um pouco das sombras serenas
que as nuvens transportam por cima do dia!
Um pouco de sombra, apenas,
- vê que nem te peço alegria.


Traze-me um pouco da alvura dos luares
que a noite sustenta no teu coração!
A alvura, apenas, dos ares:
- vê que nem te peço ilusão.


Traze-me um pouco da tua lembrança,
aroma perdido, saudade da flor!
- Vê que nem te digo - esperança!
- Vê que nem sequer sonho - amor!



********************************


Motivo da rosa


Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.

Rosas verá, só de cinzas franzida,
mortas, intactas pelo teu jardim.

Eu deixo aroma até nos meus espinhos ao longe,
o vento vai falando de mim.

E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.



(Cecília Meireles)

27.2.08

Textos no Rascunho

Muito bacana o retorno que tenho recebido dos meus dois textos que saíram no jornal de literatura Rascunho, no mês passado e em dezembro. A minha primeira alegria foi a comprovação de que, sim, há muita gente que curte debater/pensar literatura pela própria literatura, com veracidade e interesse real pelo assunto. Essa troca dá uma satisfação imensa. Os dois textos, intitulados, no jornal, de Caminhos Imprevisíveis e O tradicional e o rebelde, fazem parte da minha dissertação de mestrado, Por uma literatura sem pudor, que fiz na PUC-Rio. Na dissertação, tento refletir sobre o caminho do escritor contemporâneo diante das heranças tradicionais e de vanguarda. Para isso, o meu guia foi Cortázar, e o perfil de escritores que ele denomina como "tradicional" e "rebelde". Quem curte literatura e seus caminhos, curte a visão do próprio escritor sobre ela, não pode continuar respirando sem ler A teoria do túnel (Obra crítica I, Civilização Brasileira) de Cortázar. É apaixonante acompanhar as reflexões e angústias de Cortázar, um escritor que não canso de admirar, pelo talento, mas não só pelo talento, por sua inquietude, sua generosidade em expor as suas dúvidas, anseios, medos e questionamentos. Cortázar nunca esteve preocupado em acertar ou errar, mas em estar de acordo com a sua visão literária. Esta postura é evidente em seus textos. Cortázar tem uma pulsação muito própria, é quase como o jazz. Há uma frase melódica que dá lógica e liga ao texto, mas há o improviso, há a digressão para um caminho próprio.



A busca de uma voz própria singular, pessoal, é o fio condutor da minha dissertação. O título pode sugerir algo sexualizado, mas não tem nada a ver. O despudor citado é referente a certo olhar nublado do escritor contemporâneo diante das heranças literárias. Córtazar cita dois opostos, o escritor rebelde, que quer destruir todos os parâmetros tradicionais, e o escritor tradicional, que quer cumprir e manter a tradição realista, que formula racionalmente a realidade. Eu pensava na época em que escrevia, e continuo pensando, que o escritor contemporâneo só encontra a sua própria voz quando, de certa forma, se posiciona diante da história literária. Isso pode ser confundido com uma escolha de partido, direita ou esquerda, mas não é assim. Não é uma questão de esnobar a tradição e aplaudir a vanguarda, nem ao contrário. É ter um olhar consciente dos diversos caminhos já percorridos e relacioná-los com aquele que se percorre. É ter o conhecimento do que já foi erguido e destruído, reerguido com novo material e combatido novamente muito antes da gente nascer. É saber que não usamos armas novas, sejam elas da vanguarda ou da tradição.



Na época do teatro (saudades), esta era uma forte questão na linguagem teatral. Todos nós queríamos sair do naturalismo, do realismo. Queríamos uma linguagem criativa, queríamos dar às mãos ao teatro experimental, do Barba, Pina Baush, Grotowiski. Mas também já tínhamos consciência que o caminho experimental não era, por isso, o da contorsão, da maluquice, do porra-louca, do vale-tudo. Toda linguagem, seja ela qual for, tem a sua convenção, foi a lição principal que o teatro me deu e nunca esqueci, nunca esquecerei. Por isso, era muito engraçado quando assistíamos uma cena onde os atores tremiam, gritavam, se contorciam, faziam horrores com o corpo e a voz, na tentativa desesperada de sair do cotidiano, do realismo, do naturalismo. Como consequência, essa tentativa matava a história, ou situação encenada, matava o ritmo, matava a autenticidade da cena. O que restava? Uma visão de hospício.



Na literatura, com os ajustes para a natureza da prosa, não é muito diferente. Percebo, muitas vezes, que os textos atuais carecem de convenção, no sentido dito anteriormente. São escritos, muitas vezes, ingenuamente, como se escrever fosse apenas começar. Escrevi a dissertação pensando nessas coisas todas. Olho com mais simpatia para o escritor rebelde, citado por Cortázar, porque foi o seu perfil que levou a literatura para onde ela está. Sem os seus esforços, o passo seria mais lento. Agora, é equivocado achar que a rebeldia implica em gritos, pornografia, violência, escatologia, ou seja lá o que for considerado "moderno". Foram rebeldes Virginia Woolf e Mansfied, foram rebeldes Clarice e Rosa, foram rebeldes Hilda Hilst e Oswald de Andrade, foram pais-rebeldes Joyce, Proust e o surrealismo. Agora, é tarde demais para desfolhar um livro e pendurar as suas páginas numa árvore de arame, como fizeram os surrealistas, assim como é tarde demais para formular racionalmente uma história, com descrições, justificativas e explicações excessivamente estabelecidas. Ao meu ver, é este o impasse do escritor contemporâneo. E a história exige, ela não perdoa.



Como disse Cortázar, o desejo maior do escritor rebelde nunca foi destruir a narrativa realista apenas por destruí-la, mas porque ela paralizou dentro de sua convenção o espírito criativo e pessoal do artista. A rebeldia veio para resgatar na literatura a experiência sensível, íntima, pessoal, de quem escreve com o que escreve. Este é o princípio, e não "ser criativo e original". A originalidade e criatividade são consequências inevitáveis do artista que toma um caminho particular e único.


"O lamento está no fato da ainda tão recente noção de literatura, surgida no século 19, como algo que não é poesia, nem gênero, mas algo que trata da experiência sensível, já tivesse que enfrentar logo de início a barreira de uma afirmação literária em bases estéticas. Afirmação que valorizava, acima de tudo, a forma e o estilo, abafando o impulso pessoal e criador".


Os textos no jornal Rascunho, para quem quiser dar uma olhada:
Estão na seção de Crítica e Resenhas.

26.2.08

Um momento rodriguiano: sobre o novo-escritor

Não posso ler muito o Nelson Rodrigues. Principalmente as crônicas, não posso. E tenho lido. Muito. É uma questão de sobrevivência. As crônicas do Nelson me divertem, são mais eficazes contra o stress do que a meditação e a yoga. Decidi que, daqui para frente, nunca mais vou a yoga. Na hora da aula, acenderei o incenso, sentarei em lótus e lerei Nelson Rodrigues.


Bem, mas falo isso porque quando leio Nelson Rodrigues fico contaminada com a sua fina e cruel ironia. A sua vontade de falar o que deve e não deve. E a questão é que tenho pensado muito na Geração Paissandu que o grande escritor cita em suas crônicas. É a Geração de artistas de esquerda, que, na década de 60/70, freqüentava o cinema Paissandu, no Flamengo. Segundo Nelson, é uma geração de cineastas sem filmes, escritores sem livros, pintores sem telas, atores e atrizes sem peças, filósofos sem filosofia, e por aí vai... Todos, no entanto, profundos intelectuais. Nelson não suportava esta Geração que colocava Marx, Fidel e Che na frente da criação artística. Entretanto, apesar de colocá-los na frente, a única coisa que faziam era posar ao lado das idéias dos grandes líderes. Para a Geração, era o suficiente sair de casa, ir ao Paissandu e falar de Marx, Fidel, Che e dos livros geniais que nunca escreveriam, dos filmes geniais que nunca filmariam, etc... Para Nelson, a geração Paissandu era apenas e simplesmente uma pose monumental.


E vejam, tenho pensado muito na Geração Paissandu e de repente, navegando pela Web, me deparo com uma entrevista com novos escritores (o Nelson colocaria um hífen entre as duas palavras e emergiria daí um personagem). E a declaração bombástica de um deles (Nelson diria os nomes) é que a vantagem de sua geração é que ela não precisa conhecer o passado literário. Estão, finalmente e simplesmente, livres para criar. Nelson Rodrigues falava muito dos idiotas da objetividade. Aqueles que falam os maiores absurdos na mais inocente cara-de-pau. Ou aqueles que falam as coisas mais óbvias com o ar e a pose de um Rimbaud. Aqui, no caso, o novo-escritor falava sinceramente. Realmente achava que a ignorância era libertadora. Essa idéia confusa que une a ignorância à liberdade, Nelson não perdoaria. Ainda mais dita pelo “O jovem”, personagem conhecido das crônicas rodriguianas. Pois, como o jovem rodriguiano, o novo-escritor, com a potência de sua juventude, despachou todo o nosso passado literário com um peteleco só. Passado antigo ou recente, não importa, foram enxotados da literatura contemporânea todos os nossos escritores. Restou apenas ele, o jovem, com o seu texto livre, livre, livre.


Dói e cansa falar o óbvio, dizia Nelson Rodrigues, e dou as mãos a ele em seu cansaço e dor. Se conhecesse o passado literário, se tivesse referências de escritores, paradigmas erguidos e rompidos, para dizer o mínimo, o jovem novo-escritor teria poupado a si mesmo e aos caros leitores da declaração seguinte, que lhe pareceu vir de uma reflexão profunda e reveladora: “estamos renovando a literatura brasileira”, ele disse. Nessa hora, sobre o meu computador, baixou um mau tempo de quinto ato do Rigoletto. Um padre de passeata atravessou correndo o quarto. Um pigarro imaginário sufocou minha garganta. Senti revirar no estômago a úlcera que não tenho, e que Nelson Rodrigues acalmava todas as madrugadas com papinhas e mingaus.


Claro, claro, o jovem novo-escritor renova a literatura brasileira instaurada por ele mesmo: a de uma geração só. Assim, enterrados Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Cornélio Pena, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Hilda Hilst, Castro Alves, Autran Dourado, Graciliano Ramos, José de Alencar, Murilo Mendes, Lygia F. Telles, Lima Barreto, Qorpo-Santo, Monteiro Lobato, Érico Veríssimo, Aluísio Azevedo, Manuel Bandeira, Lúcio Cardoso, Raquel de Queirós, Adélia Prado, Sérgio Sant’anna, Cruz e Sousa, Paulo Leminski, Caio Fernando Abreu, e o próprio Nelson Rodrigues, - só para citar alguns escritores entre tantos outros que contribuíram, acrescentaram ou até mesmo transformaram a nossa literatura,- então, enterrados todos, é possível, é fácil, é rápido, ser renovador, ousado, original, genial.


Depois de ler a entrevista, interrompida no meio, confesso, só me restou voltar às crônicas rodriguianas, para acalmar os ânimos, e torcer, diante de círios ardentes, para que a opinião do jovem novo-escritor seja tão solitária como a geração que ele proclama, e não ganhe ares do estádio Mário Filho em dia de Fla x Flu.

16.2.08

Menina

Quando eu era moça e virgem tinha medo de homem. Tinha um embrulho no estômago que eu entendia como um alarme avisando que um homem se aproximava determinado a me levar, primeiro, para o escurinho e, depois, para o além. Achava todo homem grande, mesmo os mais baixinhos e magros eu achava por demais de grande e para mim todos tinham calos nas mãos e todos eram barbados.

Uma vez eu andava distraída e enjoada como sempre quando um rapaz com rosto de moça se aproximou sem que eu percebesse, disse oi sorrindo tanto e me estendeu um livro que eu logo reconheci como meu. Olhei para ele muda sem entender como uma coisa minha tinha parado assim na mão de outra pessoa. O rapaz, muito delicado, fez que eu entendesse que o tinha deixado cair sem perceber. E ainda, muito bonzinho, achou que eu devia estar pensando uma coisa muito importante para me distrair daquele jeito. Até me esforcei para ver se tinha no que eu pensava tanta importância. Mas acabei achando que não e que o quê eu tenho mesmo é um vento dentro da cabeça me rodando as idéias.

Continuei andando sentindo uma zonzeira, peguei o livro com uma vontade horrível de vomitar. Ao invés de agradecer eu disse vou vomitar, e senti ali mesmo um nojo enorme da minha pessoa. Mas o menino não se importou, me pegou com as mãos finas e me levou até um banheiro. Antes de entrar ia, finalmente, agradecer, mas ao invés de falar obrigada eu disse adoro esse livro e entrei com o coração na boca. Quando me curvei no vaso achei que ele ia pular para fora junto com o estômago, mas não pulou. Então vi que não tinha vomitado nada. E que o embrulho tinha passado todinho para o peito. Foi quando senti uma vontade irresistível de voltar. Sem saber que eu desejava tanto desejei que aquele rapaz branco como uma moça como eu além de educado fosse por Deus muito mais do que isso e ficasse lá fora me esperando. Saí afoita e desesperada já achando que é claro que ele tinha ido embora, por que iria ficar ? Mas logo dei com o seu rosto liso, também na expectativa de encontrar o meu. Gelei. E ao mesmo tempo fiquei toda quente para um abraço. Sim, não conhecia aquele moço que me esperava como ele tampouco conhecia a menina assustada que era eu mas tive naquele exato instante a certeza absoluta que morreria triste e descabelada se ele não me abraçasse ali mesmo de qualquer jeito, não precisava falar nada era só se aproximar que eu cairia levemente desmaiada nos seus braços. Quis também que ele pensasse muito em mim para sempre.
Respondi, meio tonta, que estava melhor sim, que a tonteira já tinha passado completamente que na verdade eu estava ótima e só precisava de um pouquinho de ar. Ai ! quando ele me estendeu as mãos, cheias de dedos longos de artista, e me olhou fundo como se se inclinasse, me convidando para uma dança, senti a boca se enchendo d’água e se abrindo toda, numa fome, como se fosse morder ou ser mordida. Tive também um aperto entre as pernas que, nossa mãe, nem sei como não cai ali mesmo arrastando ele comigo. Sei que tratei de morder os lábios na tentativa inútil de disfarçar como estava doida de pedra louca varrida de vontade de me explodir toda e beijar.
Com a sua mão branca segurando a minha pálida, fomos caminhando como quem passeia sem pressa de lugar nenhum. Ele falou o nome dele, eu sussurrei o meu. Quis saber se eu estava mesmo gostando do livro. Que livro ?, quase pergunto, na minha doidice, mas não sei como me controlei, lembrando logo qual era. Ele continuou o assunto dizendo que ganhou um igualzinho de presente, que já tinha começado a ler várias vezes, mas toda vez foi desistindo porque achou muito complicado. Estranhei aquilo, eu estava achando o livro ótimo e não tinha visto nada de complicado nele. A não ser, claro, a complicação da própria história, mas isso na vida de todo mundo também tem. Porém, não quis que ele me achasse metida, como eu acho que muita gente só porque lê é, e disse que realmente ele tinha toda razão que eu também estava achando ihh muito complicado mas depois não agüentei minha própria mentira e confessei que não era nada disso que na verdade não conseguia largar o livro, que estava adorando que, sei lá, vai ver eu gostava das coisas complicadas assim mesmo.

Ele me olhou de um jeito esquisito. Disse você é engraçada. E começou a rir. Fiquei curiosa sem saber que graça eu tinha feito para provocar tanto riso. Mas ele me encarou tão forte e direto que eu, como se estivesse cercada por todos os lados, fui me desviando toda. Olhei para tantas outras coisas que nem tinha mais para onde olhar. Num segundo, vi os carros as lojas as pessoas, e tudo tão rápido ! Até que, como quem dá uma volta no mesmo lugar, eu o vi de novo. E tão assustada ! pois já tinha reconhecido ali o medo de não ver. Porém, para minha tristeza ou alívio, ele não me olhava mais. Estava atento ao movimento da rua. Mas havia em sua expressão um leve sorriso, como um aviso de quem sabe que é observado mas que, fazendo de conta que não sabe, distraidamente se deixa observar. Como espiei o seu rosto ! E tanto que, de uma hora para outra, ele começou a se abrir num brilho só. Nossa, até me doeu achar ele tão bonito. Foi tão forte que, nem sei, parece que tive ali mesmo um abafo, como se começasse a me sentir mal, ou como se, de repente, começasse a não me sentir mais.

Então, eis que, tão quieto como quem vai dar um susto, e muito manso, ele se virou. Nos olhamos, enfim. E foi como um mesmo raio partindo duas pessoas. Ficamos tão confusos. Tive um sentimento recuado, como se num relance ele tivesse percebido em mim mais coisas do que eu queria ter deixado perceber. Ele também estava acuado, como se, da mesma forma, eu tivesse vislumbrado um mistério qualquer da sua vida de menino da sua pele macia que ele preferia nunca ter visto e nem deixado ver. Quase fomos cada um para um lado sem ao menos falar adeus. Mas ficamos. Era como se ao nos estranharmos, na verdade, nós nos reconhecêssemos. Por isso, não soltamos as mãos nem saímos correndo como nossos corpos pediam, só por isso, nos deixamos ficar.

Quis dizer alguma coisa, qualquer coisa, para não ficar daquele jeito como no ar suspensa, mas não tive para aquele momento nenhuma palavra. Comecei ali mesmo a sofrer de puro amor.

14.2.08

Mortes Imaginárias - II

É um livro não só para quem gosta de ler e escrever, é, principalmente, um livro para quem gosta de escritores. E, especialmente, escritores imortalizados no espaço-tempo, que já se tornaram, de certa forma, personagens.


E os escritores que passam por este livro, Montaigne, Goethe, Puchkin, Balzac, Heine, Dumas pai, Flaubert, Maupassant, Tchecov, Rilke, Doroty Parker, Nabokov, Capote, entre tantos outros, são personagens na mão de Michel Schneider, em seus últimos momentos de vida. O cerne do livro é a última palavra dita pelo escritor em seu leito de morte. Nem todas têm relação direta com o momento da morte, outras são totalmente expressivas do último instante e da última voz. O trabalho deve ter sido duro. Schneider pesquisou a biografia de cada escritor e criou depois uma espécie de conto-ensaio de cada um em seus últimos momentos, tratando de forma ficcional as circunstâncias da morte.
Para quem gosta do genêro ficção-ensaio, é maravilhoso. O livro está quase andando sozinho pela casa, de tanto que já o levei para lá e para cá. Todos os contos são muito bons, mas o sobre Tchecov é de uma riqueza impressionante. Doente, foi com a esposa para a Alemanha para um tratamento. Pouco antes de morrer, estavam no quarto o médico e sua esposa. Após a refeição, Tchecov se vira para a parede e diz, Icc sterbe. Morro, em alemão. E, em seguida, morre.
Tchecov mal sabia alemão. Mas era um homem conhecido por sua educação. Por isso, anunciava a sua partida para que não houvesse sustos nem alvoroços. E a anunciava em alemão por causa do médico alemão ao seu lado. Preferiu não falar em russo, a sua língua natal, "porque não se fala uma língua na frente de alguém que não a compreende." Assim, o escritor morreu como viveu, educadamente e sem espantos.

31.1.08

Mortes Imaginárias

"Faz tempo que não tomo champanhe, diz Tchecov antes de se entregar à velha e íntima inimiga. Ele certamente fazia pouco da glória póstuma e da pose final, e importava-se pouco em deixar uma frase de moribundo. A morte rabisca. Tchecov não tem mais a força do arrependimento. Escreveu certo dia: "A arte de escrever não é a arte de escrever bem, e sim a arte de riscar o que foi mal escrito".




"Flaubert, moribundo no sofá turco, relembra sobretudo essas imagens, como aquela que o fez ser ele próprio escritor, a mania de não ver as coisas com os olhos mas com as palavras, de escrever para imaginar o que jamais se saberá".





Não resisti em colocar uma palhinha deste livro que vem consumindo meus dias, mente-coração, desde que o ganhei de presente. (Obrigada, meu amigo! Amo ganhar livros, e este é um daqueles definitivos, que acompanham a gente para sempre).




Chama-se Mortes Imaginárias, de Michel Schneider.



Volto depois com calma e mais tempo.



Mas acordei pensando nele e não resisti.

28.1.08

Meme

A Adriana Lisboa (http://caquiscaidos.blogspot.com/) me passou este meme, que uma amiga passou para ela, que respondo aqui, e curti tanto responder que passo também para:
Cris Brasileiro e sua Elizabetta (http://avidaebettica.blogspot.com/)




1. O que você estava fazendo em 1978 (há 30 anos)?


Lendo a Bolsa Amarela, da Lygia Bojunga (Nunes, na época), procurando no armário uma bolsa amarela para mim e tagarelando sem parar, para os meus pais e a minha irmã, histórias que eu inventava no percurso de Niterói até Muriqui (coitados!), onde tínhamos uma casa de praia.


2. E em 1983, há 25?

Escrevendo poesias tristes, enfrentando a minha primeira morte (a do meu pai), cantando no coral da escola para espantar a tristeza, andando de patins com minha irmã na pista do rollerdisc e dançando muito na matinê da discoteca.


3. O que você estava fazendo em 1988?

Estava apaixonada por três garotos totalmente diferentes um do outro (afinal, qual é a graça de estar apaixonada ao mesmo tempo por três pessoas parecidas?), escrevendo poesias de amor desesperado e desesperançado para eles, mostrando para as minhas amigas, que suspiravam e copiavam os poemas nas agendas delas; aprendendo guitarra para musicar as minhas poesias de amor louco, reunindo (eu e minha irmã) amigas lá em casa com uns instrumentos que mal sabíamos segurar, muito menos tocar, e chamando isso, com muito orgulho, de banda de rock só de garotas.


4. E em 1993?

Escrevendo um conto atrás do outro e deixando aos poucos a poesia; fazendo faculdade de teatro e de letras, tudo ao mesmo tempo agora; olhando para o céu e estudando astrologia.


5. O que estava fazendo há 10 anos?

Lendo mapa astral e jogando tarô, cheia de perguntas e poucas respostas; começando a dar aula de literatura; ensaiando mil peças e apresentando a muito custo uma; fazendo performance pelas ruas com meu grupo de teatro; olhando o meu livro de contos pronto, esperando notícias.


6. E há cinco?

Namorando muito, thank you very much; estudando bastante no mestrado, arrancando os cabelos e jogando no lixo cem páginas horrorosas do meu primeiro romance, recomeçando a escrever, entre trancos e barrancos, sustos e delícias, do zero.

25.1.08

Hilda, Hilda...

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo.
E que descanso me dás
Depois das lidas.
Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.



Se eu disser que vi um pássaro
Sobre o teu sexo, deverias crer?
E se não for verdade, em nada mudará o Universo.
Se eu disser que o desejo é Eternidade
Porque o instante arde interminável
Deverias crer?
E se não for verdade
Tantos o disseram que talvez possa ser.
No desejo nos vêm sofomanias, adornos
Impudência, pejo.
E agora digo que há um pássaroVoando sobre o Tejo.
Por que não posso Pontilhar de inocência e poesia
Ossos, sangue, carne, o agora
E tudo isso em nós que se fará disforme?



Existe a noite, e existe o breu.
Noite é o velado coração de Deus
Esse que por pudor não mais procuro.
Breu é quando tu te afastas ou dizes
Que viajas, e um sol de gelo
Petrifica-me a cara e desobriga-me
De fidelidade e de conjura.
O desejo
Este da carne, a mim não me faz medo.
Assim como me veio, também não me avassala.
Sabes por quê?
Lutei com Aquele.
E dele também não fui lacaia.


Do desejo, Hilda Hilst.

22.1.08

Hoje

O nosso poeta veio hoje cantar:



a estrela cadente
me caiu ainda quente
na palma da mão




*** *** ***



desta vez não vai ter neve como em petrogrado aquele dia
o céu vai estar limpo e o sol brilhando
você dormindo e eu sonhando
nem casacos nem cossacos como em petrogrado aquele dia
apenas você nua e eu como nasci
eu dormindo e você sonhando
não vai mais ter multidões gritando como em petrogrado aquele dia
silêncio nós dois murmúrios azuis
eu e você dormindo e sonhando
nunca mais vai ter um dia como em petrogrado aquele dia
nada como um dia indo atrás do outro vindo
você e eu sonhando e dormindo



E canta também Amor Bastante, lá embaixo.


Para você, para nós.

20.1.08

Ficção, me dê ficção!

Um amigo querido, Fernando B., me perguntou o que eu queria dizer com o post do dia 8.11.07, em que coloquei a foto de um livro com as páginas abertas, e uma frase assim: "E um dia ela se levantou, exausta de realidade."
Quis dizer isso mesmo, Nando:
a realidade às vezes exaure a gente.
Precisamos de ficção, ficção, ficção.
E um dia nos levantamos, querendo uma janela que não seja a do quarto, a da parede. Queremos uma janela no livro, no filme, no quadro, na foto, no palco.
Em relação à literatura, me parece que, às vezes, os escritores estão mais preocupados em realizar (no sentido de realizar o real) do que de fabular, no sentido de inventar, fantasiar.
Mais do que "escrever bem" (o que é isso, afinal?), o desafio maior do escritor me parece ser criar um universo próprio. Conhecer e afirmar a sua voz e visão literária. Para isso é preciso mais do que escrever uma frase boa ou outra, não? O mergulho é muito maior. É um mergulho que rompe a fina e bruta película do real, e, de uma forma estranha, tem acesso a ele através do imaginário.
E, também, de forma estranha, o imaginário está inevitavelmente ligado ao que a gente lê, vê, vive, sobrevive, sobrevoa.
É uma transposição do real que, como leitora, sinto falta... Entrar numa janela, sair da realidade para voltar a ela depois diferente...
O Nando também me perguntou o que eu encontro em um livro que me faz gostar dele. Fiquei pensando nisso... É o tema? Não. São os personagens? Não. É o enredo? Não. É... um jeito de dizer e ver isso tudo: tema, personagens, enredo. Sim, é o estilo. Sim, é a linguagem. Mas, principalmente, é uma fagulha de vitalidade que está por trás do texto. É uma faísca que deixa a leitura sempre viva, não importa os olhos cansados ou viciados em ler. É o que podemos chamar de originalidade, na forma de outra palavra melhor, ou de autenticidade.
Talvez seja quando o autor absorve o real como mais um elemento para a sua criação, não como o elemento.
Quando ele/ela, na escrita, mergulha na realidade, vive, sobrevive e a sobrevoa.
Então, imagina.

17.1.08

Estranho Verbo

Um texto que escrevi há muito muito tempo, quando havia mais sombra do que luz, quando a luz demorava tanto, quando a sombra nunca era refresco e descanso, quando muitos verbos ainda eram estranhos para mim, principalmente este que agora brilha...




Estou sem mãos para o meu desamparo. Ergui os braços mais cheia de ar do que de coisas. Entendi: fui muito leve até onde vai um sentido. Mas agora cai o peso. E cai como se não houvesse queda mais provável ou libertação mais impossível. Grave engano esse: o de construir o de pertencer. Parece que não há lugar no qual se encaixe essa urgência. Eduquei-me silenciosa e no escuro a gozar com pequenas carícias. Sou delicada em minhas impurezas. Cuido para que depois da língua venha sempre o verbo. Não apenas a saliva e os lábios. Ah, o amor. Abri o peito as pernas para que ele se deitasse sobre dentro. E ele se deitou. Enfim.


Nessa noite não haverá nada mais breve. O resto é porém. Cultivei alegrias. Talvez seja apenas isso que posso dizer: que as cultivei. Depois a palavra veio como um grito. E assim eu não gosto. O som desprovido de uma forma parece um movimento sem ação dentro. Gritar é o primeiro e último estágio de uma comunicação perdida. E com esse susto (o de não dizer) não posso. Dói o silêncio que não se esvazia.

Ah quando ele não tinha nome e eu não precisava chamá-lo. Quando não havia tanto esse querer de um outro aqui. Era bom. No entanto era como não saber uma coisa e intuir quase no faro que em algum lugar existe essa coisa e que é preciso conhecer. Enquanto permaneceu o mistério eu vivia num estado certo, mas assim como se esperasse a qualquer momento uma incerteza. Então. Como uma criança que acorda cedo para ir à missa e porque é manhã e estava há pouco dormindo vai cantando hinos até a igreja. E porque a sua voz é linda e naquela semana carrega ainda intacto o orgulho de não ter cometido nenhum pecado nem dos grandes nem dos pequeninos vai seguindo o seu caminho certa do sermão da missa e lá no fundo na pontinha do sentimento que a fez se comportar tão bem vai esperando encontrar todo forte e altivo no altar não o padre nem os santos muito menos a hóstia ou os coroinhas – mas Deus. Porque está de jejum e estava há pouco sonhando. E no seu sonho havia música. Ela vai esperando um milagre. Essa criança sou eu.

15.1.08

quando eu vi você

tive uma idéia brilhante

foi como se eu olhasse

de dentro de um diamante

e meu olho ganhasse

mil faces num só instante


basta um instante

e você tem amor bastante


um bom poema leva anos

cinco jogando bola,

mais cinco estudando sânscrito,

seis carregando pedra,

nove namorando a vizinha,

sete levando porrada,

quatro andando sozinho,

três mudando de cidade,

dez trocando de assunto,

uma eternidade,

eu e você,

caminhando junto



(Amor Bastante, Paulo Leminski)

11.1.08

Livros, livros, livros!

Todo início de ano faço uma lista imaginária dos livros que quero ler por 12 meses. Sem contar os espaços vazios para aquele livro que você nem imaginava mas que cai na sua mão sem pedir licença e vale, às vezes, mais do que um livro esperado. No ano passado, foi o caso de O que eu amava, de Siri Hustvedt. Comecei a ler mais por curiosidade, já que ela é a mulher do Paul Auster. Acredito que a curiosidade, na maioria das vezes, é recompensadora. Logo esqueci com quem a autora é casada, logo esqueci quem é a autora. Acredito também que esta é uma das melhoras coisas que podem acontecer quando você abre um livro: ficar com os personagens e pronto.
Aconteceu também com As boas Mulheres da China, de Xinram. As histórias são impressionantes, fortes, comoventes e muito bem escritas. E tem uma história dentro da história: A autora estava saindo de uma aula quando alguém se aproximou por trás, bateu em sua cabeça e a derrubou no chão. Era um assalto. Na bolsa, a única cópia do manuscrito que ela tinha acabado de escrever. Isso foi em 1999, vamos imaginar que não se fazia backup com a constância de hoje, ou outro motivo qualquer. O fato é que o ladrão queria levar a bolsa que estava com a única cópia do seu livro. Como qualquer escritor pode imaginar e compreender, ela reagiu ao assalto, chutando o ladrão, que chutou de volta e sairam os dois rolando pela rua. A sorte dela, que rezamos seja de todos os escritores, é que várias pessoas se intrometeram na confusão e deteram o bandido. Quando o homem se levantou, ela percebeu que ele tinha mais de um metro e noventa! E talvez não estivesse realmente armado. Mas... faz diferença?
Ao saber do ocorrido, o policial perguntou por que ela tinha arriscado a vida por uma bolsa. Ao ouvir a resposta, retrucou: um livro é mais importante do que a sua vida?
Não era a questão de ser mais importante. Claro que não era. Mas no segundo em que reagiu, pensava no esforço emocional que teria para escrever tudo de novo. A escrita do livro tinha sido uma experiência profunda e dolorida, e Xinran, simplesmente, não poderia passar por ela de novo. E aquele era um livro que tinha que existir, que ela tinha que fazer. Então, não havia saída. Neste segundo em que reagiu, isso foi, sim, mais importante.
Agora estou lendo Todos os dias, do português Jorge Reis-Sá. Não terminei, mas estou encantada com muitas passagens. Acima de tudo, é uma linguagem tão viva e própria. Um universo tão bem construído, como se não tivesse sido nenhum esforço construir. Simplesmente, está lá. Existe, respira, experiências, personagens, autenticidade. Quando li o José Luiz Peixoto e a Felipa Mello tive a mesma impressão. E certa sensação de que a literatura contemporânea portuguesa, em alguns sentidos, anda bem mais consistente do que a brasileira.
As próximas leituras são Histórias de literatura e cegueira, de Julian Fuks; Toda Terça, de Carola Saavedra; Corpo Estranho, de Adriana Lunardi. Em busca de Klingsor, de Jorge Volpi. Mortes imaginárias, de Michel Schneider, e o que mais aparecer pelo caminho.
E reler alguns livros queridos, que foram importantes para mim: Os dragões não conhecem o paraíso, de Caio Fernando Abreu; Todos os fogos, o fogo, de Cortázar; os contos de Mansfield e de Theckov, as crônicas de Nelson Rodrigues, principalmente, O óbvio ululante e Menina sem estrela.
Ai, será que vai dar para sair de casa, ver o sol, andar de bicicleta, ir à praia, tomar sorvete?