19.5.10

MUNDOS DE EUFRÁSIA II


Quando eu vinha aqui neste blog desabafar as angústias e também as delícias de escrever Mundos de Eufrásia, mergulhava tanto no processo criativo, que era como se o romance fosse ficar para sempre nesse estágio de latência: um livro por vir. Acho que seis anos pode ser tempo suficiente para causar essa impressão em um escritor, de uma quase eternidade. E agora é tão curioso para mim perceber que me afasto do livro, enquanto outras pessoas se aproximam dele. E são essas pessoas, que lêem o livro agora, que o trazem de volta para mim. Então é como se nos reencontrassemos. Sou grata a quem tem me dado esse presente. É como se fosse uma visita de uma pessoa muita querida, com quem convivi intensamente nos últimos anos, e de repente, não nos vemos mais como antes, apenas casualmente.

Agradeço a querida escritora Adriana Lisboa (Autora dos belos livros Rakushisha, O Beijo da Colombina, Sinfonia em branco, entre muitos outros, leituras fundamentaispara quem quer conhecer o que tem de bom e do melhor da nossa literatura contemporânea ) a quem admiro até não poder mais, e continuo depois mesmo não podendo, que escreveu um lindo e generoso post em seu blog Caquis Caídos sobre a sua leitura do meu romance. Deixo o link para quem quiser dar uma olhada. http://caquiscaidos.blogspot.com/2009/08/mundos-de-eufrasia.htm Não só neste post, vale a pena navegar pelo blog inteiro da Adriana, que é ótimo.

E às vezes me surpreendo com o e-mail, a mensagem, como há aqui em alguns comentários, com o retorno de pessoas que leram o livro, pessoas que não conheço, e não me conhecem, que o livro e a literatura nos uniu. Retorno de leituras que me trazem alento e força para continuar nessa rotina equilibrista e inconstante, onde não há muito descanso, nem a sensação de um ponto de chegada, mas de movimento incessante e renovado, onde o horizonte é sempre outro ponto de partida.

É incomparável saber, por esses retornos, que a história de Eufrásia está tocando algumas pessoas que lêem o livro. Mais incomparável ainda é ver que algumas pessoas acham que o livro não é apenas um romance histórico, que não se trata apenas de uma história de amor passada no século XIX, que a vida da Eufrásia é também a vida de prisões familiares, sufocamentos, decisões e escolhas fundamentais, abertura de caminhos, busca de liberdade. A minha maior alegria foi receber esse retorno, porque esse sempre foi o sentimento principal que pairava sobre a escrita. A fricção e o embate entre a vida pública e a privada, as demandas externas sufocando as internas, a necessidade de escapar das prisões sociais e familiares que enredam. A intimidade dentro da experiência maior e menor de nossas vidas. Isso tudo é mais vital, foi ao menos para mim, do que retratar uma época, personalidades históricas, uma história de amor. É maravilhoso, para o autor, quando o leitor toca nessa mesma tecla, que é a essência do livro.

Quando essa nota essencial é ressoada pela leitura, é o escritor que vibra, podem acreditar. Não há nada mais belo do que uma música plenamente ouvida e absorvida em seu sentido mais íntimo.

6.1.10

Novo romance


Interessante o movimento que se cria depois da publicação de um livro. Enquanto o autor, que era íntimo do livro, se afasta pouco a pouco dele, os leitores se aproximam. E são os leitores que, como quem chama uma pessoa para visitar um velho amigo, vão trazendo o livro de volta ao autor.


Agora, neste momento, de seis meses de publicação, de um ano e meio de término da escrita, só agora sinto que um espaço interno está se abrindo para outro livro. Há muito tempo que venho pensando nele, desde o último ano da escrita de Eufrásia. Venho pensando, anotando, deixando de lado, pedindo para ele esperar um pouco que ainda não estava na hora, fui esquentando as idéias no banho maria, fermentando pouco a pouco as imagens e personagens que vinham surgindo, até que, em março de 2009, sentei diante do computador para fazer algum trabalho qualquer, e, quando vi, tinha escrito quatro páginas do novo romance.


Essas quatro páginas me trouxeram o clima, a atmosfera, os personagens, a linguagem, o ritmo e o fluxo do universo da história. Fiquei muito animada e no dia seguinte tentei continuar. Não saiu nada. Mais outro dia: nada. Nessa época, estava mergulhada na revisão de Eufrásia, pensando no livro o tempo todo, no processo, na criação, com saudade dos personagens. Percebi que precisava ir dissipando aos poucos a intensa convivência com o livro e tudo que ele representou para mim para então pensar claramente no outro.

E agora, que ultrapassei as quatro páginas, vivo um momento de expectativa total. Aquele momento da criação em que você ainda não escreveu o suficiente para saber qual é "a cara" do livro, qual formato ele vai ter, e cada passo dado, cada nova página, é uma incrível descoberta.

E essa emoção da página em branco: como vou preenchê-la? Vou conseguir preenchê-la?


Bem, é uma delícia, e uma angústia também.


Mas, confesso, estava com muitas saudades de escrever. De entrar no universo de uma história. De ser absorvida por ela. De "ver" os personagens, de ser assaltada por eles nos momentos mais inesperados, fazendo café, andando na rua, na fila do banco.


Hoje fui dar uma volta na praia com o único e exclusivo objetivo de pensar na história e nos personagens. Quando vi, estava anotando coisinhas no caderno enquanto andava, gesticulando e falando alguma coisa pensando nos personagens, enfim, doida de pedra.



Mas como é bom enlouquecer um pouco.



17.8.09

MUNDOS DE EUFRÁSIA I


Venho hoje redimir o fato de não ter feito nenhum post ainda sobre o lançamento do meu primeiro romance, Mundos de Eufrásia. Mas, antes de tudo, gostaria de falar um pouco dessa incrível realidade que é para mim ver e tocar o livro pronto. Quem leu alguns post anteriores desse blog, sabe do que estou falando. A jornada quase eterna da escrita, da pesquisa, da vida de fora e de dentro do livro. Mesmo depois que entreguei o romance à editora, eu continuei totalmente ligada a ele, nas reescritas, nas revisões, nas conversas, na saudade. E, um dia, fui à editora Record, para uma reunião, sabendo que Ele já tinha saído da gráfica, estava fora do forno, fumegante e a minha espera. Eu fui ao encontro Dele, num dos percursos mais estranhos de minha vida. Eu não sabia o que pensar, nem o que sentir. Já havia chorado um pouco em casa, antes de sair, de pura alegria e alívio. Era estranho, sobretudo, a sensação de que eu precisava ir até Ele, fazer uma trajetória tão externa e cotidiana (trânsito, táxi, dinheiro, hora), quando, na verdade, por seis anos, o caminho foi tão inverso. Eu não precisava ir a lugar nenhum para encontrar com Ele. Ele estava em mim e saía de mim, estávamos grudados um no outro.

Então, quando cheguei à editora e o vi, (me deparei não apenas com um exemplar, mas com uma pilha de vários exemplares), tive um sentimento que até hoje não entendo direito: um enorme vazio misturado à uma brutal sensação de realidade. Talvez aquele dia tenha sido um dos mais concretos de minha vida. Eu não conseguia parar de tocá-lo. Como se fosse necessário confirmar a sua presença, ou confirmar que essa presença agora não mais me pertencia, estava absolutamente separada da minha pessoa. Acredito que nem todo processo criativo é assim, não foi assim com o meu livro de contos. Sei lá, quanto mais um filho nos exige, mais nos damos a ele.
Vai ver é isso. Esse dia, em que o vi, senti a primeira grande ruptura. O filho já estava crescido, alimentado, saudável, devidamente vestido e arrumado para partir para a vida. E foi.

Voltei com um exemplar para a casa, começando enfim a sentir a alegria devida: de ver o livro publicado, de apreciar a capa, que ficou linda, a diagramação caprichada, e tudo o mais. E quanto mais eu me aproximava de casa, mais o livro ia deixando os bastidores da criação, com as suas circunstâncias e contextos, e se tornando um livro, desses que a gente vê nas livrarias.

Naquela noite, escrevi na minha agenda: hoje foi um dia concreto.


28.3.09

Sobrevida II

Às vezes
o dia não rende
nada se resolve
nada acontece
nada brilha
todas as coisas ganham o formato de fila no banco
compras no mercado, números a somar e subtrair
E de repente
quando tudo parece perdido
quando você já está acreditando
que dessa semente não sai fruta
que a poeira nunca mais deixaria os móveis
que o piloto estava para sempre no modo automático
Algo se rompe
algo se quebra
algo arrebenta
algo explode
de uma forma que
por mais que doa um pouco ou muito
você logo reconhece
que é necessário
romper
quebrar
arrebentar
explodir
para isso:
uma frase ou duas
apenas isso:
uma frase
que renda
que resolva
que aconteça
que brilhe mais
do que o dia


*
*
*

Sobrevida I

Às vezes
Tem poemas que esbarram com a gente
como numa esquina...
quando estamos indo para um caminho
o poema para outro
e ambos no mesmo sentido...



O dia inteiro


O dia inteiro perseguindo uma idéia :
vagalumes tontos contra a teia
das especulações, e nenhuma
floração, nem ao menos
um botão incipiente
no recorte da janela
empresta foco ao hipotético jardim.
Longe daqui, de mim
(mais para dentro)
desço no poço de silêncio
que em gerúndio vara madrugadas
ora branco (como lábios de espanto)
ora negro (como cego, como
medo atado à garganta)
segura apenas por um fio, frágil e físsil,
ínfimo ao infinito,
mínimo onde o superlativo esbarra
e é tudo de que disponho
até dispensar o sonho de um chão provável
até que meus pés se cravem
no rosto desta última flor.


Claudia Roquette-Pinto


8.3.09



e a saudade: esse pequeno sol no peito.


O RETORNO

Devo desculpas aos meus 3 queridos e hipotéticos leitores deste blog, se esses já não desistiram, por este tempo todo sem postagem. As causas foram duas: a primeira, muito trabalho e pouco tempo, apesar da vontade. A segunda, mais cruel: quando enfim ia postar, o blogger simplesmente não me reconhecia. Não consegui entrar no meu próprio blog por alguns meses. Depois de alguns e-mails de socorro, consegui resolver o problema e aqui estou.

Uma das coisas que queria ter escrito aqui, e escrevo agora, é sobre a incrível diferença atmosférica que sinto após ter terminado o romance. Sei que quando estamos envolvidos em um projeto, seja ele qual for, ele se torna na maioria das vezes a referência de nossos dias. Tudo flui e conflui por ele e para ele e assim foi com o romance. Mesmo quando eu não estava escrevendo, eu estava. Quer dizer, a relação com o livro continuava, apesar da distância. Antes, quando escrevia contos, eu entrava e saía das atmosferas de cada um talvez sem perceber intensamente o quanto eu era absorvida por elas. Com o romance sobre a Eufrásia Teixeira Leite, houve um momento crucial na escrita, em que percebi que precisava me aproximar mais dos sentimentos da personagem. O romance não é em primeira pessoa, mas eu precisava de uma voz íntima. Eu ou o livro, não sei, talvez, nós dois. O que sei é que só agora percebo como estava imersa no universo do livro, tantas vezes sombrio e melancólico, tão diferente da minha natureza. Estranho que eu parecia eu, como sempre fui, mas de algum modo a atmosfera de algumas passagens do livro, os sentimentos que essas passagens exigiam, as reflexões que despertavam, as feridas que eram necessárias sentir para escrever sobre elas, a tensão entre as relações dos personagens, as conseqüências de atravessar por essas relações e personalidades para escrever sobre elas, tudo isso e mais, foi me contaminando, me trazendo um sentimento introspectivo e fechado ao resto do mundo. Há claro aqui algum exagero, típico de quem tem júpiter na casa 1 (voltei a estudar astrologia, fazer o quê, conseqüências desses longos seis anos provavelmente). Mas o que posso dizer, além disso, se agora parece que uma cortina se abriu para uma janela ensolarada, se agora enxergo paisagens que antes deslumbravam diariamente diante dos meus olhos - completamente ignoradas? Não sei precisar exatamente o que houve, mas agora parece que há mais luz e leveza em tudo. Uma amiga espírita me disse que, como os personagens do livro existiram, foram pessoas como nós, os seus espíritos me assombraram (inspiraram?) esses anos todos, enquanto eu escrevia o livro. Ui. Incrível como eu, tão chegada a esses assuntos, nunca considerei essa possibilidade. Se foi assim, como diz o querido poeta, tudo vale a pena se a alma não é pequena. E espero que não tenha sido, que tenha sido-seja grande, alta, iluminada. Espero sinceramente que o livro tenha alcançado alguma veracidade e profundeza da existência de Eufrásia e dos outros, mas, principalmente ela, a incrível mulher que ela foi.


Mas queria dizer que, neste livro, o movimento da criação foi oposto ao do livro anterior, A pequena morte e outras naturezas, de contos. Com os contos, o mundo exterior me inspirava, eu observava as pessoas, as ouvia, tirava delas material para as histórias. Imagens, situações, música, paisagens, gente, aulas, textos, poesia, prosa, tudo, tudo me despertava, me inspirava, me imbuía. Havia um fluxo de troca muito interessante e bom, eu absorvia o exterior, tornava-o meu, e o devolvia através da escrita, de volta ao mundo. Neste romance, não. Foi tudo diferente. O movimento foi muito mais de dentro para fora, de dentro para dentro. O mundo não me inspirava. Não como antes. Houve, sim, músicas, filmes, livros, muitos livros, imagens da época, mas sempre de um modo muito introspectivo, dentro de um universo muito próprio. Eu também falava sobre o livro e trocava idéias com as pessoas, mas ainda assim todo o ato criativo era obscuro, moído (Não estou achando a palavra certa. Não quero dizer que eu me fechava de propósito. Na verdade, fazia grande esforço para me abrir). Talvez isso tenha acontecido porque a história se passava no século XIX, e eu precisei me transportar, o que acarretou em certo fechamento para este nosso mundo. O que me inspirava era apenas o que trazia o século XIX para mim. Não sei se isso é bom ou ruim, certo ou errado, mas acho curioso como a atmosfera e o universo da história determinaram o processo criativo, e não eu.



26.10.08

Domingo de Clarice, com Clarice, por Clarice

"O processo de escrever é difícil?
Mas é como chamar de difícil
o modo extremamente caprichoso
e natural como uma flor é feita".



Clarice Lispector, Legião estrangeira.

13.10.08

Lendo Caio, sobrevida.



"Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas.

(...)

Deixa eu te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver nascer uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente.

(...)

Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende?"

Trechos de Para uma avenca partindo (O OVO APUNHALADO)


" Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome." (Trechos de Pequenas epifanias)



"e tudo que eu andava fazendo e sendo eu não queria que ele visse nem soubesse, mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo, por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era." (Além do Ponto, em Morangos Mofados)


"Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de "minha vida". Outros fragmentos, daquela "outra vida". De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos." (Trecho de Dois ou três almoços, uns silêncios)



5.10.08

Por uma alegria genuína

Sempre que volto às aulas de criação literária na Estação das Letras, tenho uma espécie de reencontro feliz com a literatura. Especialmente quando as turmas são compostas de pessoas que realmente gostam e se interessam pela escrita. E apenas ela. E só ela.


É de uma alegria quase infantil, o coração descoberto, ver, ouvir e falar com essas pessoas, de profissões tão diversas. Jornalistas, advogados, músicos, engenheiros, professores, psiquiatras, só para citar algumas, e também universitários, estudantes do ensino médio, gente de todas as idades e todos os tipos, que não querem necessariamente publicar um livro, não querem seguir carreira literária, não querem ganhar prêmios, ver os seus nomes impressos e nem tudo o mais que envolve os arredores literários. O que eles querem, então, afinal?


Eles querem escrever.


Sim, apenas isso. E olhe, não é pouco. Há muitos caminhos a serem descobertos a partir desse desejo. Vejo a alegria genuína neles ao descobrirem. Sinto a alegria genuína de estimular e acompanhar essas descobertas. Quando encontro pessoas assim, turmas assim, é uma festa. Uma verdadeira celebração da escrita. Sei que nem todas as turmas são desse jeito. Realmente, é deprimente quando vemos pessoas mais interessadas em afirmar o ego por meio da escrita do que em escrever, mais concentradas em atiçar vaidades e derrubar conquistas alheias do que mergulhar no processo da escrita, que é único, pessoal, intenso e extremamente vulnerável.


Em 2003, fez dez anos que escrevi o conto que marcou, para mim, o início de um caminho mais pessoal na escrita. Escrevo desde pequena, mas a partir deste conto, A hora do galo, comecei a ter mais consciência da linguagem, da textura da escrita, do ritmo, do que é buscar uma voz singular. Em 1996, este conto foi premiado em um concurso da RioArte. De 1993 a 1996, escrevi outros contos, tentando encontrar a minha voz, tentando escrever e apenas isso. Em 1996, questões pessoais, a falta de tempo, a incerteza em assumir a escrita de um livro, a doação do tempo necessário da vida para isso (não há ilusões: se você não é rico ou algo parecido, o tempo para escrever um livro não existe, ele precisa ser cavado no cotidiano. Ele precisa ser retirado de algum lugar), e tantas outras dúvidas me afastaram da escrita. Estava me formando em Letras e em Teatro, e dois futuros incertos me pesavam. Um amigo então me falou do concurso, e nem pensei em participar. Me inscrevi no último dia, com o pensamento místico de que o resultado daquele concurso seria um sinal para mim. Apenas isso, um sinal. Eu não estava pensando em "vitória", em nada disso. Naquele momento de escolhas e definições, eu apenas precisava desesperadamente saber se o meu amor pela literatura era de alguma forma correspondido. Se não era platônico, com tinham sido outros amores. Como a música, como até o teatro parecia ser. Então, quando saiu o resultado e o meu conto foi premiado, foi muito mais do que qualquer vitória, mais do que ter o sentimento de que ali havia um caminho, foi como ouvir, num sussurro, "eu também". Podia ser um amor bandido, esquisito, incerto, repleto de inseguranças e expectativas, mas ele existia. E, às vezes, só saber que o amor existe já basta.


Claro que se o conto não tivesse sido premiado, eu continuaria a escrever, e cedo ou tarde viriam outros sinais para as minhas dúvidas e angústias. Mas era como se eu tivesse forçado o destino... Se eu contar até dez e uma mulher grávida virar a esquina... se hoje fizer sol... se o telefone tocar daqui a pouco... se... se... por acaso ou por sorte, aconteceu.

De 1996 a 1998, escrevi e reescrevi os contos pensando em um possível livro. Em 2000, o livro foi publicado. E de lá até hoje, depois de muitas lágrimas, suor e cerveja, a escrita está cada vez mais frequente em meus dias, ganhando pouco a pouco mais espaço e tempo, mais tranquilidade e prazer. E nesse tempo todo, desde que escrevi sem a menor expectativa de entrar no "mercado", anos atrás, até agora que escrevo com a consciência dele, não há a menor dúvida que é a escrita que continua movendo tudo. É a escrita. E só ela. Por isso, a alegria genuína ao encontrar pessoas que escrevem porque escrevem.

A ironia de tudo isso é que, com ilustres exceções, encontro essa alegria genuína com a literatura mais em pessoas que não tem pretensões literárias, não se dizem escritores e não publicam livros. Como eu disse, pessoas das mais diversas profissões. Não vejo essa alegria quando vou a um congresso, não vejo em escritores falando de seus livros e seus processos de criação. Novamente, com ilustres exceções, não vejo nem mesmo um rastro de fagulha. Vejo um bocejo em tudo. Ou um savoir-faire forçado em relação à escrita. É certo que cada um tem seu jeito de lidar com cada coisa. Mas sinto falta de partilhar a alegria e mesmo as angústias de um amor em comum.

Ou talvez hoje eu esteja muito sentimental.

De qualquer forma, Cortázar dizia o seguinte, "Com toda a honestidade, declaro que nas poucas vezes em que precisei ficar em tais sanatórios de literatura voltei para a rua com um enorme desejo de tomar vinho num bar olhando as garotas passando nos ônibus. E a cada dia me parece mais lógico e mais necessário ir à literatura - seja na condição de autor, seja na de leitor - como se vai aos encontros mais essenciais da existência, como se vai ao amor e por vezes à morte, sabendo que fazem parte indissolúvel de um todo e que um livro começa e termina muito antes e muito depois da sua primeira e última palavra".

E como é bom isso.



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25.9.08

Para iluminar o dia

OUTRA RECEITA (Armando Freitas Filho )


Da linguagem, o que flutua
ao contrário do feijão à João
é o que se quer aqui, escrevível:
o conserto das palavras, não só
o resultado final da oficina
mas o ruído discreto e breve
o rumor de rosca, a relojoaria
do dia e do sentido se fazendo
sem hora para acabar, interminável
sem acalmar a mesa, sem o clic
final, onde se admite tudo –
o eco, o feno, a palha, o leve –
até para efeito de contraste
para fazer do peso – pesadelo.
E em vez de pedra quebra-dente
para manter a atenção de quem lê
como isca, como risco, a ameaça
do que está no ar, iminente.

27.8.08

Atrás da estante

Peço desculpas aos meus três hipotéticos e queridos leitores pela ausência das postagens nestes últimos meses. Imaginem que depois de pôr o verdadeiro ponto final no romance, entrei em um estado de exaustão mental e cansaço físico. Especialmente nas mãos, os dedos pediram férias do teclado.

E também há outro motivo, talvez o mais forte: nem sempre há algo a dizer.

O silêncio, então...

Mas não podia deixar de postar aqui a respeito da minha Coluna no Jornal de literatura Rascunho, Atrás da Estante, que fez a sua estréia neste mês de agosto.

A oportunidade feliz de escrever esta coluna causou um rebuliço aqui dentro no momento em que eu não estava operando, mas em pausa.

Há muito tempo, desde que eu comecei a dar aulas, tanto de literatura brasileira como de criação literária, que muitas questões referentes à leitura e à escrita, à vida literária e à crítica me provocam e me instigam. Geralmente, o percurso de volta para casa é preenchido mais com pensamentos do que com a consciência de atravessar a rua, pegar o ônibus, pagar a passagem, depois descer, abrir a porta, entrar. A discussão continuava aqui após a aula, se desdobrando em outros assuntos, travando relações com os textos, as idéias, as experiências dos alunos e com a minha própria experiência.

Então, os dedos começaram a coçar, sem saber para onde ir a princípio. Este blog é o resultado desta coçeira. Um espaço para falar sobre literatura, abordando livremente os seus infinitos aspectos. Uma crônica postada aqui há bastante tempo é outro resultado, O labirinto da estante. Outros posts também. Eu sabia que queria escrever ensaios, mas não ensaios muito acadêmicos, e também não sabia direito ainda o modo em que faria isso. Era só uma vontade, que ficou me rondando por um tempo, à espreita.

Então, lembrei de um trecho da minha dissertação, em que discuti uma questão conceitual, transformando o "escritor tradicional" (termo de Julio Cortázar) e o filósofo Nietzsche em personagens, inserindo-os em determinada situação exemplar para a discussão. Às vezes fazemos sem querer coisas que são sinais e sementes para um caminho posterior. E assim nasceu a vontade de discutir questões literárias por meio de um ensaio-ficcional. E depois de alguns anos roendo e remoendo a vontade, surgiu a oportunidade no Jornal Rascunho, que sempre li e admirei, graças ao seu editor, Rogério Pereira.

A primeira coluna se chama Tiro nas letras, e é sobre o ensino de literatura nas escolas... Tortura que vivi na própria pele, como professora... Para mim, este é um assunto grave e urgente, comentado aqui e ali, mas ainda não discutido o suficiente para se tornar a grande questão que deveria ser.

Aqui vai um trecho da Coluna:


Tiro nas letras


Quando Raul Pompéia suicidou-se com um tiro, aos trinta e dois anos, em uma triste noite de natal, deixando uma controvertida obra composta de novelas, romances e crônicas, não podia prever que um século depois, um rapaz de dezessete anos tiraria um resumo do seu livro Ateneu da mochila, se sentaria na cadeira de uma escola com o jeans surrado de todos os dias, balançaria nervosamente os tênis durante toda a aula, enquanto respondia, valendo um ponto cada, questões desse tipo: a) O escritor naturalista Raul Pompéia morreu de tuberculose. b) O escritor romântico Raul Pompéia era homossexual. c) Raul Pompéia era natural do Rio de Janeiro. d) O escritor Raul Pompéia suicidou-se.

Do mesmo modo, Castro Alves quando escreveu Navio negreiro, aos vinte e um anos, tomado pela densidade poética e pela forte questão humana que envolvia a defesa da emancipação dos escravos, não poderia imaginar que cem anos depois trechos do seu poema seriam impressos na prova de uma matéria chamada Literatura Brasileira, e, muito menos, poderia supor, em seus maiores delírios, que as perguntas feitas a partir de sua obra seriam: 1) O autor deste poema pertence a qual fase do romantismo?, 2) Quais as características do movimento romântico expressas em Castro Alves?


Muito menos Augusto dos Anjos, que falava com a morte tão de perto em seus poemas a ponto de ela ter chegado cedo a sua vida na forma de uma pneumonia fatal, aos trinta anos, não poderia conceber que, dez décadas depois, uma professora em início de carreira, apaixonada desde sempre por seus versos de angústia e espanto, entrou em depressão profunda após uma aula de literatura, na qual por pressão do programa curricular, da carga horária apertada e da data da prova, teve que resumir a obra de seu poeta preferido em duas frases: Os versos mórbidos de Augusto dos Anjos ofenderam a métrica parnasiana e os bons costumes da lírica, ela ditou, trêmula, do livro didático para os alunos. O pessimismo do poeta aliado à ciência acusava a degradação humana por meio de analogias com processos químicos e biológicos, disse, lúgubre. De-gra, o quê, professora?, um aluno perguntou, enquanto copiava. De-gra-da-ção hu-ma-na, repetiu, perplexa, e, naquela noite, queimou em silêncio profundo as cinqüenta cópias do poema O Deus-verme, que havia escolhido e impresso para ler e discutir na aula.



Para ler o restante, acesse a sessão Coluna em www.rascunho.com.br.