31.5.06

A criação para Scliar



Vinte e uma coisas que aprendi como escritor
Moacyr Scliar

APRENDI que escrever é basicamente contar histórias, e que os melhores livros de ficção que li eram aqueles que tinham uma história para contar.
APRENDI que o ato de escrever é uma seqüela do ato de ler. É preciso captar com os olhos as imagens das letras, guardá-las no reservatório que temos em nossa mente e utilizá-las para compor depois as nossas próprias palavras.
APRENDI que, quando se começa, plagiar não faz mal nenhum. Copiei descaradamente muitos escritores, Monteiro Lobato, Viriato Correa e outros. Não se incomodaram com isto. E copiar me fez muito bem.
APRENDI que, quando se começa a escrever, sempre se é autobiográfico, o que - de novo - não prejudica. Mas os escritores que ficam sempre na autobiografia, que só olham para o próprio umbigo, acabam se tornando chatos.
APRENDI que, para aprender a escrever, tinha de escrever. Não adiantava só ficar falando de como é bonito ( ... )
APRENDI que uma boa idéia pode ocorrer a qualquer momento: conversando com alguém, comendo, caminhando, lendo (e, segundo Agatha Christie, lavando pratos).
APRENDI que uma boa idéia é realmente boa quando não nos abandona, quando nos persegue sem cessar. O grande teste para uma idéia é tentar se livrar dela. Se veio para ficar, se resiste ao sono, ao cansaço, ao cotidiano, é porque merece atenção.
APRENDI que aeroportos e bares são grandes lugares para se escrever. O bar, por razões óbvias; o aeroporto, porque neles a vida como que está em suspenso. Nada como uma existência provisória para despertar a inspiração literária.
APRENDI que as costas do talão de cheque é um bom lugar para anotar idéias (é por isso que escritor tem de ganhar a grana suficiente para abrir uma conte bancária). O guardanapo do restaurante também serve, desde que seja de papel e não de pano. (...)
APRENDI que o computador é um grande avanço no trabalho de escrever, mas tem um único inconveniente: elimina os originais, os riscos, os borrões, e portanto a história do texto, a qual - como toda história - pode nos ensinar muito.
APRENDI que a mancha gráfica representada pelo texto impresso diz muito sobre este mesmo texto. As linhas não podem estar cheias de palavras; o espaço vazio é tão eloqüente quanto o espaço preenchido pela escrita. O texto precisa respirar, e quando respira, fica graficamente bonito. Um texto bonito é um texto bom.
APRENDI a rasgar e jogar fora. Quando um texto não é bom, ele não é bom - ponto. Por causa da auto-comiseração (é a nossa vida que está ali!) temos a tentação de preservá-lo, esperando que, de forma misteriosa, melhore por si. Ilusão. É preciso ter a coragem de se desfazer. A cesta de papel é uma grande amiga do escritor. (...)
APRENDI a não ter pressa de publicar. Já se ouviu falar de muitos escritores batendo aflitos, à porta de editores. O que é mais raro, muito mais raro, são os leitores batendo à porta do escritor.
APRENDI a não reler meus livros. Um livro tem existência autônoma, boa e má. Não precisa do olhar de quem o escreveu para sobreviver.
APRENDI que, para um escritor, um livro é como um filho, mas que é preciso diferenciar entre filhos e livros.
APRENDI que terminar um livro se acompanha de uma sensação de vazio, mas que o vazio também faz parte da vida de quem escreve.
APRENDI que há uma diferença entre literatura e vida literária, entre literatura e política literária. Escrever é um vício solitário.
APRENDI a diferenciar entre o verdadeiro crítico e o falso crítico. O falso crítico não está falando do que leu. Está falando dos seus próprios problemas.
APRENDI que, para um escritor, frio na barriga ou pêlos do braço arrepiados são um bom sinal: um livro vem vindo aí.

2.5.06

O PONTO FINAL

Sim, confesso, estou vivendo a crise do ponto final. Essa paisagem tortuosa e torturante, sedutora e irresistível, esse ponto-horizonte que persigo dia a dia, frase a frase, pelo qual me lanço a passos largos e miúdos, arfante e incansável, língua de fora, boca seca, esperançosa e desejante. A visão alucinada de teclar o . na última página e ver o espaço branco depois, de quem não tem mais nada a dizer.

Acostumada com contos, cujo ponto final é um horizonte próximo e provavél, entrei na escrita deste romance sem saber o que me esperava: dias, meses, anos convivendo com os personagens, seus caminhos, suas emoções, seus destinos. São vidas inconclusas que te acompanham até serem concluídas, e ninguém mais pode concluí-las, a não ser quem as inventou. No conto, as vidas se concentram intensas e os personagens vivem determinada experiência e pronto. No romance, os personagens envelhecem junto com o autor. Sei que não é assim com todos, mas está sendo assim comigo. É um fio que se estica até não poder mais, é dormir e acordar acompanhada dos personagens e de suas tramas. É muita gente para uma cama só! Os personagens são pessoas egoístas, eles invadem a sua vida e não querem saber. A invasão é, ao mesmo tempo, bem-vida e mal-vinda. Eles não sabem que existe uma coisa chamada limite. E parece que o escritor também não. Há dias que nos entendemos há mil maravilhas, outros dias a comunicação é cheia de ruídos, impossível. Há dias de silêncio, dias de euforia. Dias emotivos, dias de planejamento. São muitos dias até o último.
É uma delícia, confesso.
E também não é.
Porque parece que tem um mundo dentro de você querendo sair de uma vez só num jorro incessante intenso explosivo de efeito imediato e definitivo - como no conto -
mas este mundo sai pouco a pouco num processo pingado de gotas extensas e profundas - mas lentas e de efeito prolongado - como o romance
É como ter uma panela pressão na cabeça, que deixa o ar escapar num fio para não explodir. Ou como estar numa grande sala lotada de gente com uma única saída para todo mundo. Não adianta, tem que sair um de cada vez.
Até a última pessoa deixar o salão.
Até a última frase despontar no horizonte.
Até chegar a hora do ponto final.
Explico: não é o desejo de me livrar do trabalho, como se fosse um fardo. Não é isso. O processo é maravilhoso, escrever é minha alegria. Não é isso. É a necessidade de ver o mundo criado pronto, erguido, construído. No conto, este mundo se ergue rápido. Fica a estrutura pronta para ser retrabalhada nos detalhes. No romance, essa construção é uma grande obra. Por isso, quero o ponto final, para poder me afastar e ver de longe como é afinal este mundo que construí.
Enquanto isso, pelo menos aqui:
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