27.8.08

Atrás da estante

Peço desculpas aos meus três hipotéticos e queridos leitores pela ausência das postagens nestes últimos meses. Imaginem que depois de pôr o verdadeiro ponto final no romance, entrei em um estado de exaustão mental e cansaço físico. Especialmente nas mãos, os dedos pediram férias do teclado.

E também há outro motivo, talvez o mais forte: nem sempre há algo a dizer.

O silêncio, então...

Mas não podia deixar de postar aqui a respeito da minha Coluna no Jornal de literatura Rascunho, Atrás da Estante, que fez a sua estréia neste mês de agosto.

A oportunidade feliz de escrever esta coluna causou um rebuliço aqui dentro no momento em que eu não estava operando, mas em pausa.

Há muito tempo, desde que eu comecei a dar aulas, tanto de literatura brasileira como de criação literária, que muitas questões referentes à leitura e à escrita, à vida literária e à crítica me provocam e me instigam. Geralmente, o percurso de volta para casa é preenchido mais com pensamentos do que com a consciência de atravessar a rua, pegar o ônibus, pagar a passagem, depois descer, abrir a porta, entrar. A discussão continuava aqui após a aula, se desdobrando em outros assuntos, travando relações com os textos, as idéias, as experiências dos alunos e com a minha própria experiência.

Então, os dedos começaram a coçar, sem saber para onde ir a princípio. Este blog é o resultado desta coçeira. Um espaço para falar sobre literatura, abordando livremente os seus infinitos aspectos. Uma crônica postada aqui há bastante tempo é outro resultado, O labirinto da estante. Outros posts também. Eu sabia que queria escrever ensaios, mas não ensaios muito acadêmicos, e também não sabia direito ainda o modo em que faria isso. Era só uma vontade, que ficou me rondando por um tempo, à espreita.

Então, lembrei de um trecho da minha dissertação, em que discuti uma questão conceitual, transformando o "escritor tradicional" (termo de Julio Cortázar) e o filósofo Nietzsche em personagens, inserindo-os em determinada situação exemplar para a discussão. Às vezes fazemos sem querer coisas que são sinais e sementes para um caminho posterior. E assim nasceu a vontade de discutir questões literárias por meio de um ensaio-ficcional. E depois de alguns anos roendo e remoendo a vontade, surgiu a oportunidade no Jornal Rascunho, que sempre li e admirei, graças ao seu editor, Rogério Pereira.

A primeira coluna se chama Tiro nas letras, e é sobre o ensino de literatura nas escolas... Tortura que vivi na própria pele, como professora... Para mim, este é um assunto grave e urgente, comentado aqui e ali, mas ainda não discutido o suficiente para se tornar a grande questão que deveria ser.

Aqui vai um trecho da Coluna:


Tiro nas letras


Quando Raul Pompéia suicidou-se com um tiro, aos trinta e dois anos, em uma triste noite de natal, deixando uma controvertida obra composta de novelas, romances e crônicas, não podia prever que um século depois, um rapaz de dezessete anos tiraria um resumo do seu livro Ateneu da mochila, se sentaria na cadeira de uma escola com o jeans surrado de todos os dias, balançaria nervosamente os tênis durante toda a aula, enquanto respondia, valendo um ponto cada, questões desse tipo: a) O escritor naturalista Raul Pompéia morreu de tuberculose. b) O escritor romântico Raul Pompéia era homossexual. c) Raul Pompéia era natural do Rio de Janeiro. d) O escritor Raul Pompéia suicidou-se.

Do mesmo modo, Castro Alves quando escreveu Navio negreiro, aos vinte e um anos, tomado pela densidade poética e pela forte questão humana que envolvia a defesa da emancipação dos escravos, não poderia imaginar que cem anos depois trechos do seu poema seriam impressos na prova de uma matéria chamada Literatura Brasileira, e, muito menos, poderia supor, em seus maiores delírios, que as perguntas feitas a partir de sua obra seriam: 1) O autor deste poema pertence a qual fase do romantismo?, 2) Quais as características do movimento romântico expressas em Castro Alves?


Muito menos Augusto dos Anjos, que falava com a morte tão de perto em seus poemas a ponto de ela ter chegado cedo a sua vida na forma de uma pneumonia fatal, aos trinta anos, não poderia conceber que, dez décadas depois, uma professora em início de carreira, apaixonada desde sempre por seus versos de angústia e espanto, entrou em depressão profunda após uma aula de literatura, na qual por pressão do programa curricular, da carga horária apertada e da data da prova, teve que resumir a obra de seu poeta preferido em duas frases: Os versos mórbidos de Augusto dos Anjos ofenderam a métrica parnasiana e os bons costumes da lírica, ela ditou, trêmula, do livro didático para os alunos. O pessimismo do poeta aliado à ciência acusava a degradação humana por meio de analogias com processos químicos e biológicos, disse, lúgubre. De-gra, o quê, professora?, um aluno perguntou, enquanto copiava. De-gra-da-ção hu-ma-na, repetiu, perplexa, e, naquela noite, queimou em silêncio profundo as cinqüenta cópias do poema O Deus-verme, que havia escolhido e impresso para ler e discutir na aula.



Para ler o restante, acesse a sessão Coluna em www.rascunho.com.br.