31.1.08

Mortes Imaginárias

"Faz tempo que não tomo champanhe, diz Tchecov antes de se entregar à velha e íntima inimiga. Ele certamente fazia pouco da glória póstuma e da pose final, e importava-se pouco em deixar uma frase de moribundo. A morte rabisca. Tchecov não tem mais a força do arrependimento. Escreveu certo dia: "A arte de escrever não é a arte de escrever bem, e sim a arte de riscar o que foi mal escrito".




"Flaubert, moribundo no sofá turco, relembra sobretudo essas imagens, como aquela que o fez ser ele próprio escritor, a mania de não ver as coisas com os olhos mas com as palavras, de escrever para imaginar o que jamais se saberá".





Não resisti em colocar uma palhinha deste livro que vem consumindo meus dias, mente-coração, desde que o ganhei de presente. (Obrigada, meu amigo! Amo ganhar livros, e este é um daqueles definitivos, que acompanham a gente para sempre).




Chama-se Mortes Imaginárias, de Michel Schneider.



Volto depois com calma e mais tempo.



Mas acordei pensando nele e não resisti.

28.1.08

Meme

A Adriana Lisboa (http://caquiscaidos.blogspot.com/) me passou este meme, que uma amiga passou para ela, que respondo aqui, e curti tanto responder que passo também para:
Cris Brasileiro e sua Elizabetta (http://avidaebettica.blogspot.com/)




1. O que você estava fazendo em 1978 (há 30 anos)?


Lendo a Bolsa Amarela, da Lygia Bojunga (Nunes, na época), procurando no armário uma bolsa amarela para mim e tagarelando sem parar, para os meus pais e a minha irmã, histórias que eu inventava no percurso de Niterói até Muriqui (coitados!), onde tínhamos uma casa de praia.


2. E em 1983, há 25?

Escrevendo poesias tristes, enfrentando a minha primeira morte (a do meu pai), cantando no coral da escola para espantar a tristeza, andando de patins com minha irmã na pista do rollerdisc e dançando muito na matinê da discoteca.


3. O que você estava fazendo em 1988?

Estava apaixonada por três garotos totalmente diferentes um do outro (afinal, qual é a graça de estar apaixonada ao mesmo tempo por três pessoas parecidas?), escrevendo poesias de amor desesperado e desesperançado para eles, mostrando para as minhas amigas, que suspiravam e copiavam os poemas nas agendas delas; aprendendo guitarra para musicar as minhas poesias de amor louco, reunindo (eu e minha irmã) amigas lá em casa com uns instrumentos que mal sabíamos segurar, muito menos tocar, e chamando isso, com muito orgulho, de banda de rock só de garotas.


4. E em 1993?

Escrevendo um conto atrás do outro e deixando aos poucos a poesia; fazendo faculdade de teatro e de letras, tudo ao mesmo tempo agora; olhando para o céu e estudando astrologia.


5. O que estava fazendo há 10 anos?

Lendo mapa astral e jogando tarô, cheia de perguntas e poucas respostas; começando a dar aula de literatura; ensaiando mil peças e apresentando a muito custo uma; fazendo performance pelas ruas com meu grupo de teatro; olhando o meu livro de contos pronto, esperando notícias.


6. E há cinco?

Namorando muito, thank you very much; estudando bastante no mestrado, arrancando os cabelos e jogando no lixo cem páginas horrorosas do meu primeiro romance, recomeçando a escrever, entre trancos e barrancos, sustos e delícias, do zero.

25.1.08

Hilda, Hilda...

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo.
E que descanso me dás
Depois das lidas.
Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.



Se eu disser que vi um pássaro
Sobre o teu sexo, deverias crer?
E se não for verdade, em nada mudará o Universo.
Se eu disser que o desejo é Eternidade
Porque o instante arde interminável
Deverias crer?
E se não for verdade
Tantos o disseram que talvez possa ser.
No desejo nos vêm sofomanias, adornos
Impudência, pejo.
E agora digo que há um pássaroVoando sobre o Tejo.
Por que não posso Pontilhar de inocência e poesia
Ossos, sangue, carne, o agora
E tudo isso em nós que se fará disforme?



Existe a noite, e existe o breu.
Noite é o velado coração de Deus
Esse que por pudor não mais procuro.
Breu é quando tu te afastas ou dizes
Que viajas, e um sol de gelo
Petrifica-me a cara e desobriga-me
De fidelidade e de conjura.
O desejo
Este da carne, a mim não me faz medo.
Assim como me veio, também não me avassala.
Sabes por quê?
Lutei com Aquele.
E dele também não fui lacaia.


Do desejo, Hilda Hilst.

22.1.08

Hoje

O nosso poeta veio hoje cantar:



a estrela cadente
me caiu ainda quente
na palma da mão




*** *** ***



desta vez não vai ter neve como em petrogrado aquele dia
o céu vai estar limpo e o sol brilhando
você dormindo e eu sonhando
nem casacos nem cossacos como em petrogrado aquele dia
apenas você nua e eu como nasci
eu dormindo e você sonhando
não vai mais ter multidões gritando como em petrogrado aquele dia
silêncio nós dois murmúrios azuis
eu e você dormindo e sonhando
nunca mais vai ter um dia como em petrogrado aquele dia
nada como um dia indo atrás do outro vindo
você e eu sonhando e dormindo



E canta também Amor Bastante, lá embaixo.


Para você, para nós.

20.1.08

Ficção, me dê ficção!

Um amigo querido, Fernando B., me perguntou o que eu queria dizer com o post do dia 8.11.07, em que coloquei a foto de um livro com as páginas abertas, e uma frase assim: "E um dia ela se levantou, exausta de realidade."
Quis dizer isso mesmo, Nando:
a realidade às vezes exaure a gente.
Precisamos de ficção, ficção, ficção.
E um dia nos levantamos, querendo uma janela que não seja a do quarto, a da parede. Queremos uma janela no livro, no filme, no quadro, na foto, no palco.
Em relação à literatura, me parece que, às vezes, os escritores estão mais preocupados em realizar (no sentido de realizar o real) do que de fabular, no sentido de inventar, fantasiar.
Mais do que "escrever bem" (o que é isso, afinal?), o desafio maior do escritor me parece ser criar um universo próprio. Conhecer e afirmar a sua voz e visão literária. Para isso é preciso mais do que escrever uma frase boa ou outra, não? O mergulho é muito maior. É um mergulho que rompe a fina e bruta película do real, e, de uma forma estranha, tem acesso a ele através do imaginário.
E, também, de forma estranha, o imaginário está inevitavelmente ligado ao que a gente lê, vê, vive, sobrevive, sobrevoa.
É uma transposição do real que, como leitora, sinto falta... Entrar numa janela, sair da realidade para voltar a ela depois diferente...
O Nando também me perguntou o que eu encontro em um livro que me faz gostar dele. Fiquei pensando nisso... É o tema? Não. São os personagens? Não. É o enredo? Não. É... um jeito de dizer e ver isso tudo: tema, personagens, enredo. Sim, é o estilo. Sim, é a linguagem. Mas, principalmente, é uma fagulha de vitalidade que está por trás do texto. É uma faísca que deixa a leitura sempre viva, não importa os olhos cansados ou viciados em ler. É o que podemos chamar de originalidade, na forma de outra palavra melhor, ou de autenticidade.
Talvez seja quando o autor absorve o real como mais um elemento para a sua criação, não como o elemento.
Quando ele/ela, na escrita, mergulha na realidade, vive, sobrevive e a sobrevoa.
Então, imagina.

17.1.08

Estranho Verbo

Um texto que escrevi há muito muito tempo, quando havia mais sombra do que luz, quando a luz demorava tanto, quando a sombra nunca era refresco e descanso, quando muitos verbos ainda eram estranhos para mim, principalmente este que agora brilha...




Estou sem mãos para o meu desamparo. Ergui os braços mais cheia de ar do que de coisas. Entendi: fui muito leve até onde vai um sentido. Mas agora cai o peso. E cai como se não houvesse queda mais provável ou libertação mais impossível. Grave engano esse: o de construir o de pertencer. Parece que não há lugar no qual se encaixe essa urgência. Eduquei-me silenciosa e no escuro a gozar com pequenas carícias. Sou delicada em minhas impurezas. Cuido para que depois da língua venha sempre o verbo. Não apenas a saliva e os lábios. Ah, o amor. Abri o peito as pernas para que ele se deitasse sobre dentro. E ele se deitou. Enfim.


Nessa noite não haverá nada mais breve. O resto é porém. Cultivei alegrias. Talvez seja apenas isso que posso dizer: que as cultivei. Depois a palavra veio como um grito. E assim eu não gosto. O som desprovido de uma forma parece um movimento sem ação dentro. Gritar é o primeiro e último estágio de uma comunicação perdida. E com esse susto (o de não dizer) não posso. Dói o silêncio que não se esvazia.

Ah quando ele não tinha nome e eu não precisava chamá-lo. Quando não havia tanto esse querer de um outro aqui. Era bom. No entanto era como não saber uma coisa e intuir quase no faro que em algum lugar existe essa coisa e que é preciso conhecer. Enquanto permaneceu o mistério eu vivia num estado certo, mas assim como se esperasse a qualquer momento uma incerteza. Então. Como uma criança que acorda cedo para ir à missa e porque é manhã e estava há pouco dormindo vai cantando hinos até a igreja. E porque a sua voz é linda e naquela semana carrega ainda intacto o orgulho de não ter cometido nenhum pecado nem dos grandes nem dos pequeninos vai seguindo o seu caminho certa do sermão da missa e lá no fundo na pontinha do sentimento que a fez se comportar tão bem vai esperando encontrar todo forte e altivo no altar não o padre nem os santos muito menos a hóstia ou os coroinhas – mas Deus. Porque está de jejum e estava há pouco sonhando. E no seu sonho havia música. Ela vai esperando um milagre. Essa criança sou eu.

15.1.08

quando eu vi você

tive uma idéia brilhante

foi como se eu olhasse

de dentro de um diamante

e meu olho ganhasse

mil faces num só instante


basta um instante

e você tem amor bastante


um bom poema leva anos

cinco jogando bola,

mais cinco estudando sânscrito,

seis carregando pedra,

nove namorando a vizinha,

sete levando porrada,

quatro andando sozinho,

três mudando de cidade,

dez trocando de assunto,

uma eternidade,

eu e você,

caminhando junto



(Amor Bastante, Paulo Leminski)

11.1.08

Livros, livros, livros!

Todo início de ano faço uma lista imaginária dos livros que quero ler por 12 meses. Sem contar os espaços vazios para aquele livro que você nem imaginava mas que cai na sua mão sem pedir licença e vale, às vezes, mais do que um livro esperado. No ano passado, foi o caso de O que eu amava, de Siri Hustvedt. Comecei a ler mais por curiosidade, já que ela é a mulher do Paul Auster. Acredito que a curiosidade, na maioria das vezes, é recompensadora. Logo esqueci com quem a autora é casada, logo esqueci quem é a autora. Acredito também que esta é uma das melhoras coisas que podem acontecer quando você abre um livro: ficar com os personagens e pronto.
Aconteceu também com As boas Mulheres da China, de Xinram. As histórias são impressionantes, fortes, comoventes e muito bem escritas. E tem uma história dentro da história: A autora estava saindo de uma aula quando alguém se aproximou por trás, bateu em sua cabeça e a derrubou no chão. Era um assalto. Na bolsa, a única cópia do manuscrito que ela tinha acabado de escrever. Isso foi em 1999, vamos imaginar que não se fazia backup com a constância de hoje, ou outro motivo qualquer. O fato é que o ladrão queria levar a bolsa que estava com a única cópia do seu livro. Como qualquer escritor pode imaginar e compreender, ela reagiu ao assalto, chutando o ladrão, que chutou de volta e sairam os dois rolando pela rua. A sorte dela, que rezamos seja de todos os escritores, é que várias pessoas se intrometeram na confusão e deteram o bandido. Quando o homem se levantou, ela percebeu que ele tinha mais de um metro e noventa! E talvez não estivesse realmente armado. Mas... faz diferença?
Ao saber do ocorrido, o policial perguntou por que ela tinha arriscado a vida por uma bolsa. Ao ouvir a resposta, retrucou: um livro é mais importante do que a sua vida?
Não era a questão de ser mais importante. Claro que não era. Mas no segundo em que reagiu, pensava no esforço emocional que teria para escrever tudo de novo. A escrita do livro tinha sido uma experiência profunda e dolorida, e Xinran, simplesmente, não poderia passar por ela de novo. E aquele era um livro que tinha que existir, que ela tinha que fazer. Então, não havia saída. Neste segundo em que reagiu, isso foi, sim, mais importante.
Agora estou lendo Todos os dias, do português Jorge Reis-Sá. Não terminei, mas estou encantada com muitas passagens. Acima de tudo, é uma linguagem tão viva e própria. Um universo tão bem construído, como se não tivesse sido nenhum esforço construir. Simplesmente, está lá. Existe, respira, experiências, personagens, autenticidade. Quando li o José Luiz Peixoto e a Felipa Mello tive a mesma impressão. E certa sensação de que a literatura contemporânea portuguesa, em alguns sentidos, anda bem mais consistente do que a brasileira.
As próximas leituras são Histórias de literatura e cegueira, de Julian Fuks; Toda Terça, de Carola Saavedra; Corpo Estranho, de Adriana Lunardi. Em busca de Klingsor, de Jorge Volpi. Mortes imaginárias, de Michel Schneider, e o que mais aparecer pelo caminho.
E reler alguns livros queridos, que foram importantes para mim: Os dragões não conhecem o paraíso, de Caio Fernando Abreu; Todos os fogos, o fogo, de Cortázar; os contos de Mansfield e de Theckov, as crônicas de Nelson Rodrigues, principalmente, O óbvio ululante e Menina sem estrela.
Ai, será que vai dar para sair de casa, ver o sol, andar de bicicleta, ir à praia, tomar sorvete?