27.2.08

Textos no Rascunho

Muito bacana o retorno que tenho recebido dos meus dois textos que saíram no jornal de literatura Rascunho, no mês passado e em dezembro. A minha primeira alegria foi a comprovação de que, sim, há muita gente que curte debater/pensar literatura pela própria literatura, com veracidade e interesse real pelo assunto. Essa troca dá uma satisfação imensa. Os dois textos, intitulados, no jornal, de Caminhos Imprevisíveis e O tradicional e o rebelde, fazem parte da minha dissertação de mestrado, Por uma literatura sem pudor, que fiz na PUC-Rio. Na dissertação, tento refletir sobre o caminho do escritor contemporâneo diante das heranças tradicionais e de vanguarda. Para isso, o meu guia foi Cortázar, e o perfil de escritores que ele denomina como "tradicional" e "rebelde". Quem curte literatura e seus caminhos, curte a visão do próprio escritor sobre ela, não pode continuar respirando sem ler A teoria do túnel (Obra crítica I, Civilização Brasileira) de Cortázar. É apaixonante acompanhar as reflexões e angústias de Cortázar, um escritor que não canso de admirar, pelo talento, mas não só pelo talento, por sua inquietude, sua generosidade em expor as suas dúvidas, anseios, medos e questionamentos. Cortázar nunca esteve preocupado em acertar ou errar, mas em estar de acordo com a sua visão literária. Esta postura é evidente em seus textos. Cortázar tem uma pulsação muito própria, é quase como o jazz. Há uma frase melódica que dá lógica e liga ao texto, mas há o improviso, há a digressão para um caminho próprio.



A busca de uma voz própria singular, pessoal, é o fio condutor da minha dissertação. O título pode sugerir algo sexualizado, mas não tem nada a ver. O despudor citado é referente a certo olhar nublado do escritor contemporâneo diante das heranças literárias. Córtazar cita dois opostos, o escritor rebelde, que quer destruir todos os parâmetros tradicionais, e o escritor tradicional, que quer cumprir e manter a tradição realista, que formula racionalmente a realidade. Eu pensava na época em que escrevia, e continuo pensando, que o escritor contemporâneo só encontra a sua própria voz quando, de certa forma, se posiciona diante da história literária. Isso pode ser confundido com uma escolha de partido, direita ou esquerda, mas não é assim. Não é uma questão de esnobar a tradição e aplaudir a vanguarda, nem ao contrário. É ter um olhar consciente dos diversos caminhos já percorridos e relacioná-los com aquele que se percorre. É ter o conhecimento do que já foi erguido e destruído, reerguido com novo material e combatido novamente muito antes da gente nascer. É saber que não usamos armas novas, sejam elas da vanguarda ou da tradição.



Na época do teatro (saudades), esta era uma forte questão na linguagem teatral. Todos nós queríamos sair do naturalismo, do realismo. Queríamos uma linguagem criativa, queríamos dar às mãos ao teatro experimental, do Barba, Pina Baush, Grotowiski. Mas também já tínhamos consciência que o caminho experimental não era, por isso, o da contorsão, da maluquice, do porra-louca, do vale-tudo. Toda linguagem, seja ela qual for, tem a sua convenção, foi a lição principal que o teatro me deu e nunca esqueci, nunca esquecerei. Por isso, era muito engraçado quando assistíamos uma cena onde os atores tremiam, gritavam, se contorciam, faziam horrores com o corpo e a voz, na tentativa desesperada de sair do cotidiano, do realismo, do naturalismo. Como consequência, essa tentativa matava a história, ou situação encenada, matava o ritmo, matava a autenticidade da cena. O que restava? Uma visão de hospício.



Na literatura, com os ajustes para a natureza da prosa, não é muito diferente. Percebo, muitas vezes, que os textos atuais carecem de convenção, no sentido dito anteriormente. São escritos, muitas vezes, ingenuamente, como se escrever fosse apenas começar. Escrevi a dissertação pensando nessas coisas todas. Olho com mais simpatia para o escritor rebelde, citado por Cortázar, porque foi o seu perfil que levou a literatura para onde ela está. Sem os seus esforços, o passo seria mais lento. Agora, é equivocado achar que a rebeldia implica em gritos, pornografia, violência, escatologia, ou seja lá o que for considerado "moderno". Foram rebeldes Virginia Woolf e Mansfied, foram rebeldes Clarice e Rosa, foram rebeldes Hilda Hilst e Oswald de Andrade, foram pais-rebeldes Joyce, Proust e o surrealismo. Agora, é tarde demais para desfolhar um livro e pendurar as suas páginas numa árvore de arame, como fizeram os surrealistas, assim como é tarde demais para formular racionalmente uma história, com descrições, justificativas e explicações excessivamente estabelecidas. Ao meu ver, é este o impasse do escritor contemporâneo. E a história exige, ela não perdoa.



Como disse Cortázar, o desejo maior do escritor rebelde nunca foi destruir a narrativa realista apenas por destruí-la, mas porque ela paralizou dentro de sua convenção o espírito criativo e pessoal do artista. A rebeldia veio para resgatar na literatura a experiência sensível, íntima, pessoal, de quem escreve com o que escreve. Este é o princípio, e não "ser criativo e original". A originalidade e criatividade são consequências inevitáveis do artista que toma um caminho particular e único.


"O lamento está no fato da ainda tão recente noção de literatura, surgida no século 19, como algo que não é poesia, nem gênero, mas algo que trata da experiência sensível, já tivesse que enfrentar logo de início a barreira de uma afirmação literária em bases estéticas. Afirmação que valorizava, acima de tudo, a forma e o estilo, abafando o impulso pessoal e criador".


Os textos no jornal Rascunho, para quem quiser dar uma olhada:
Estão na seção de Crítica e Resenhas.

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