29.3.08

Um delírio por Moira

Parecia que estava tudo terminado. Do alto do prédio as avenidas. Para cada peça de roupa que tirava, nada mais a vestia. Sentia-se sublime. Submersa.
Sub.
Já tinha lutado todas as guerras, pisado na terra úmida, atravessado o pó e as pedras. Chegara, então, no limite.
Difícil.
Já amou tanta gente.
Todos na família diziam isso : que ela amava demais.
Era muito dada.
Difícil para ela, não ser. Os pés tremiam, gelados. Pés de tantos caminhos, esquecidos no gelo. As mãos também eram abandonadas ao inverno. Mãos que tocavam quase sem textura, frias sobre a superfície.
Áspera lisa macia. Grossa escorregadia dura. Agoniada, quis congelar de vez. Não só as extremidades : tudo. O aluguel vai vencer, a luz vai vencer, o telefone vai. Quis congelar. O papel branco e números. Logo para ela que amava os livros. Os seus pés não esperavam pedras tão agudas. A carteira estava vazia e o banco lhe mandara uma cartinha. Mais juros de não sei o quê. Cheque especial. O centro do seu corpo ardeu da luz mais intensa. Teve um pensamento que – Ah, como tudo aqui é embrutecido ! – foi o que pensou. Um dinheiro que não era seu fora depositado em sua conta. É como areia e vento o diabo que não se vê. Como tudo aqui é –
Pressentiu – uma aridez.
Que difícil.
De tanto calor e frio, ela não pôde mais. Descobriu-se água, descobriu-se vento. Lançou ondas, soprou ventanias. Fez-se mar.
Bebeu do copo uma água sem gosto. Se não arranjasse logo outro emprego, morreria - sim sim morreria. Não tinha cara de pedir nada a ninguém. Era muito dada. No amor. Todo mundo dizia. Mas na fome – o que podia dar ? Era forte, mas se ficasse faminta, só ia querer saber de comer. Não podia sozinha com o seu corpo impedir toda a ressaca.
Só não estava mais fraca por causa dos exercícios. Os nervos, os músculos. Quando parava de mão, via os pés lá em cima. O sangue descendo para mente era bom de sentir. A cabeça perto da terra dava um medo de ver.
Ah, andar, coisa urgente ! correr então ! Ela sabia : bater o currículo – entregar o currículo – esperar então !
Os dedos, já azuis de inverno, tocavam o umbigo. Desde menina ela gostava de mexer no buraquinho macio. Afundava o indicador nele. Gostava de afundar. O umbigo - de fogo e brasa – envolvia – um por um - os dedos. Ela era arquiteta. Sonhava com estruturas. O seu apartamento era frio. O seu cobertor, velho. Tinha muito o que falar para aquela gente do escritório. Reclamavam que ela não sabia datilografar direito, nem fazer um bom cafezinho. Hum. Mentira. Em casa o seu café era bom. O cheiro forte, a cor escura. A palavra limite na boca, a palavra sua. Na gaveta, o diploma. No escritório, o susto :– Sou arquiteta ! , isso era o que tinha para falar para aquela gente. Não falou. Viu que as unhas compridas de tantos anos quebravam pelo caminho, formando um círculo em si mesmas. Ela olhava. Ela ria. Olhava e ria. Juntava os pedaços caídos ao seu redor, formava montes. Viu-se montanha. Começou a chorar.
A pele bebeu as lágrimas. O sal ficou no corpo. Prédios altos sobre as avenidas. Prédios baixos também. A régua e o lápis distantes. Casas próprias para as famílias. Nada mais tinha a dizer. Nascera para desenhar. O risco traçou no papel o seu caminho. Da sua mão deveria vir o abrigo. Mas disseram : recessão, e ela não pôde mais. E, depois, em nenhum outro lugar pôde. Falou em tantas entrevistas, e por tanto tempo. Os olhos ardendo sem ver horizonte. A sensação pequena – não estava pedindo – mas o olhar de todos como se estivesse. O olhar de todos e ela pequena. O sal queimando sob o sol. O sal. Com tanto não ela não pôde. Só pôde isso de bater em botões e servir café. Quis morrer de novo. Mas tinha as prestações e os planos e os seguros para pagar. Tinha também os livros a família um amor e tanta coisa. É que, ás vezes, o mundo devasta tudo como fogo. Mas ela não queria morrer de fogo, preferia morrer de mar.
Olhou a pequena chama em seu ventre. Se deixasse, cresceria no umbigo até incêndio. Tentara também empregos públicos. Agora, tentava diminuir a chama como um isqueiro. Também já tinha lido todos os manuais, passado em todos os concursos. Falaram que a chamariam, um dia, quando houvesse uma vaga. Ela continua esperando. Ainda acredita que deve haver um lugar para a sua urgência. Mas, até lá, se levanta e não sabe quando, para quê, para onde, como. O quê fazer ? Como ?
Difícil.
Depois de secar as lágrimas com os cabelos, cismou de secá-los no fogo. Foi arrancando os fios, enquanto sussurrava um canto. Que coisa. Os cabelos na pequena chama do umbigo. Talvez não consiga pagar o som novo. E a televisão grande. Talvez não. Da janela ela media a distância. 12 x com alguns juros. Talvez não houvesse mais nada que pudesse ter. Teria então o silêncio. Poderia ser o silêncio de dormir, ou o outro. Que coisa. Nem sempre era assim. Tão triste. Tinha algum amor que ela encontrava. E as amigas que a chamavam para se divertir - e beber.
Ah ! ela ia - passava o batom – e ia ! – Gostava de ver gente – de ouvir – de dançar- de viver !
Lá pelas tantas – cantava.
Mas a sua voz parecia vir de fora.
Por dentro, era incêndio.
Queimou parte dos cabelos, queimou os dedos também. De azuis tornaram-se vermelhos. Muito mais bonitos, os dedos vermelhos. Descobriu-se vaidosa. Penteou-se. Sentiu a língua. O cheiro. Pensou no amor que tinha. E estava longe. Queria agora as mãos dele nos seus cabelos. As mãos dele. Em outros lugares também. Arrancou alguns fios. Ai ! como estavam vivos !
Uma vez, amou um homem e o seu corpo. Ele lhe tirava suspiros - ela gostava. O que ela falava - ele entendia. Era só olhar - ele a alcançava. Mas então. Ela não entendeu. Arrancou mais fios. Como poderia entender ? E arrancou mais. Distâncias acontecem. Ela o amava. Ele também. O que foi acontecer ? Uma distância.
Difícil.
Arrancou mais fios. E mais. Fez um ninho. Colocou-o ao redor da chama. Puxou água dos seios para apagar o fogo, puxou vento dentre as pernas para espalhar a brasa. O vento espalhou. A água apagou. Deus, dos homens que a amaram. Alguns souberam como. Outros não. Mas esse. Meu Deus. Ela não entendeu. A luz tornou-se cinza. E tão de repente. Estava tudo bem. Como nunca esteve entre os homens. E então. Houve a transferência. Mas por que para tão longe ? Não falaram o porquê. Falaram outra coisa : que era urgente. Que precisavam dele - lá. Precisam de mim, ele disse. Com urgência. E olhou para ela apaixonado alegre e triste. Mas eu não vou, decidiu. Não quero ir. Vou falar que fico. Vou falar. Mas quando foi dizer. Não disse. Era muito dinheiro. Não teve como dizer - não. Disse sim. Não teve como.
Que coisa. A luz ficou cinza. De restos. Ela tentava conservá-la. Mesmo cinza assim. Esfregava-a no peito. Guardava-a no ventre, para lhe dar forças. Que sobrevivesse, por favor ! Pressionava o corpo para sentir nas mãos o furor e a alegria. Pressionava. O nome dele na boca, as cartas dele pela cama, as roupas dele como travesseiro lençol como pijama para ela fechar os olhos e dormir embrulhada por baixo por cima por–
Que difícil.
Tinham tanto o que falar - um para o outro.
Ouvir o som - não as palavras.
Mas, ás vezes, tudo fugia. Como poeira e pó há pouca luz na sombra. Ah, ela abraçava forte os livros porque eles lhe eram caros. Porque eles lhe diziam coisas que ela não ouvia mais ninguém dizer, ela abraçava os livros.
Os seus desejos não contavam com formas tão brutas. Como tudo aqui é. O aluguel vai vencer, a luz vai vencer, o telefone vai. Também já tinha tentado vender cosméticos. Depois, calcinhas. Já estava cansada de tão em pé nas filas. Toda a luz tornara-se pó como coisa moída. Só lhe restara a alma limpa a solidez que herdara da família. Raiz que finca bem e fundo ninguém tira. Embora tenha vezes em que o vento forte parece, de tão forte, uma força impossível. Assusta. Mas até o fim a raiz resiste inteira. E ela bem sabe que dentro da poeira e seiva permanece a vida. Então, tira da língua a palavra fogo. E antes que soltasse faíscas ela diz : água. Junta o líquido à substância. Com os dedos longos amassa. Um dia, terá que arrumar a casa. Quando. Junta mais água. Transforma o pó em massa. Estica os dedos – as unhas quebradas. Mais pó. Mais água. Amassa.
Um dia, mudará as cortinas os tapetes. Para o seu amor, pintará os lábios as paredes. Talvez esteja amando demais. Nas mãos, a massa brilha. No corpo dela - a estrutura. Ah, e só pode mesmo ser demais ! Com esse amor lhes espera uma filha. Ela sabe. Mas quando. Bate em seu ventre para adquirir consistência. Bate mais. Só quer aquilo que ama. E bate. Só o que acredita. Para. O resto não. A massa brilha. Com o resto não tem paciência. Quer que brilhe mais. Nunca teve. Que brilhe tanto. Quer também que exploda. Massa luz e tudo. No céu. Mira bem para jogar alto. Pois. Quando ele voltar. Ela olha para cima. Mede a distância. Pois. Quando o desenho for de novo o seu risco o seu passo. Aí, sim. Ela olha o céu. Respira. Olha de novo. Levanta as mãos. Mira. Ah, mas está cansada de estrelas –

prefere que a luz exploda em suas próprias mãos.

___________Que coisa ! Quis subir as montanhas, atirar-se lá de cima. Correr correr correr ! Sumir. Mas os pés não obedeceram – ficaram. Da janela, a cidade as pessoas. As pessoas de longe são gente esquisita. Que tanto andam. Parecem sempre as mesmas andando e indo. Lá embaixo, ela andava assim também. Mas que estranho. De longe não viu sentido. Achou melhor não ir. Pois, era preciso ficar. E receber o vento na cara. Sim, porque a verdade começava a sair do esconderijo.

Já molhara as plantas – já lavara a louça – já fizera as compras – já chorara um pouco –
Já fora ao cinema – terminara o romance – arrumara a estante – já estendera a roupa –

De vez em quando, folheava uma revista cheia de poses e truques. E arrancava as folhas com raiva e alegria.

Às vezes, também sentia desfolhar-se.

Em suas mãos, o cheque, o extrato vazio. Na televisão, as palavras estudadas parecem sempre bem ditas. Como ela se afobava com as marcas e os anúncios ! Até que, um dia, cerrou os olhos para a tela grande e bonita. O apresentador do jornal nem teve cara de dizer. Mas as crianças o salário a doença – a crise a violência os índices – a fome o IR a polícia –
Difícil.
Com a mão no controle, ela apontou a TV. Mirava a TV, com a mão apertando o controle. E apertava. Era fácil : liga-desliga, esse canal-aquele. Era só escolher. Mas, tinha vezes que queria e o desgraçado não funcionava. Ou ela mirava de muito longe. Ou não encontrava a posição. Também podia ser a bateria que não –
O corte. Dizem. É preciso. Sentiu queimando as palmas. Para isso não tem censura. Revoltou-se. Na rua as pessoas acreditam - não acreditam. Foi crescendo indignação até fogueira. Na dúvida as pessoas : nada. Resignou-se. Não podia só com o seu corpo impedir a ressaca. Lá fora todo mundo – idem. Parecia que era preciso cegar para ver. No papel, os poucos traços que tinha. Nenhum som e palavra. Que caíssem no chão as lágrimas. A geladeira vazia. Ela não soube como conseguiram o seu endereço. Outro dia, chegou pelo correio. Um cartão. De crédito. Não foi ela que pediu. Mandaram. Olhou para ele, lívida. Quebrou-o em dois para não ter dúvidas. É como sal e doce o diabo que não se vê. Sentiu que queimava à beira de uma morte. É como areia e vento – o diabo -
Pressentiu - ali estava –
que aridez.

O tempo é essa música que se esgota. Língua travada nos dentes. Nem sempre ela precisava das palavras. Era um grave engano esse que sofria. Pois. Tinha sempre a impressão de precisar. Submergia sem conter os fios. Um esticava. Outro se partia. Outro enrolava. Uma vez, ela achou que – ao ficar quieta – ficava triste. Mas não. Também pensava que para ser ouvida tinha que falar. Não sabia que os Deuses trabalham no silêncio.
Quando soube, calou-se e –

nossa.

Sentada no sofá, ela ouviu.

Deixou no prato a carne que não mais comia. Fechou os olhos para consumir-se. Destruiu os vestígios da noite mal dormida. O que não pôde mais jogou no lixo.
Talvez tenha que devolver o som e a TV. Talvez tenha que esquecer o amor e a filha. Meu Deus. Pensou o que seria o que seria o que seria. Desfolhou todos os livros para alcançar o sentido –

______ mas não encontrou atrás das páginas nenhuma pessoa.

_______________________________ Deixou então que as folhas caíssem.


Acompanhou a queda livre como um pequeno vôo. Não lia palavra. Descamava por dentro um mundo. Então, ela viu na folha caída o limite. Já não via mesmo mais o mar.
Tinha fluência em 3 línguas. Todos os que leram o seu currículo sabiam. Mas do que lhe servia isso agora. Bem. Podia dizer eu te amo 3 x diferente para ele. E 3 x volte. E em todas as vezes seria o mesmo amor. Se não errasse a pronúncia.
Se não errasse –
Nos almoços de família, ela comia tanto. Como se pudesse se entupir de tudo que um dia a protegera. Pois. Estava agora descoberta. Se tentasse mais um movimento, poderia até quebrar os ossos. Ficaria mais ágil, se ousasse escapar do próprio corpo, se se erguesse apenas com o que realmente fosse seu. Aí, sim. Dançaria linda ao redor da chama. Com o sangue quente, criaria a sua máscara. Com os dedos longos, pintaria a pele. Teria então a vida inteira como sua. Como só se tem a morte ela teria a vida. Seria seu e apenas seu todo o instante.
O banco forte não sabia. Mas ela é que era especial. Ah, as árvores não se iludem com a pouca luz das lâmpadas. Que coisa. Tirou mel da boca e passou na vista. Na ponta dos pés ficava na mesma altura dos saltos. Quando andava descalça sentia-se baixinha. Não queria preocupar a família os amigos que não mereciam preocupação. Um dia tudo passa como a brisa mais leve. Um dia tudo se –

Viu-se menina azul e violeta. Se ficasse doida seria mais um caso na família. Ajoelharia em seu próprio trono, pisaria em seu próprio manto. O céu que cai sobre as avenidas não sabe. Ela sim, ela sabe – tem muito talento um amor e planos. Achou bom olhar para cima, ter onde cair no chão. O que não pode mais é ficar assim - dependendo de fulano sicrano beltrano. Já era uma coisa depender de si. Um dia já lhe elogiaram tanto. Que os ossos se quebrem. Ela continua a mesma – e sabe : é capaz de suspender a respiração por um minuto inteiro. Ou mais.
Uma vez, deixara o ar levantar a poeira. Deixa agora a poeira invadir os espaços. Um dia, a deixará percorrer a sombra das janelas, abrir o vento das cabeças.

O horizonte não tem meio. Por onde ela pudesse chegar. Tanto faz. Dentro da boca ela sabe – ainda há o que dizer. Talvez nunca diga. Respira. Que coisa. Olhou para os lados, para baixo, para cima. O mar as montanhas a gente. O azul o céu os bichos. A fumaça as lojas as avenidas. Que estranho. Tudo estava ali, e ela dentro. Como da terra a verdura o agrotóxico o inseticida, como da gentileza a alegria a cobrança a medida, como do álcool a limpeza o perfume a bebida , como na boca a língua fala pouco - mais a saliva. Do jeito que a palavra é dita quase nunca é ouvida,
do que jeito que distorcem as coisas – desculpe, como do carro a aventura o conforto a batida - e com o tudo mais que rima não rima – fez-se parte.
Pois.
Tinha que continuar.
Para não perder o hábito, dar uma volta até a esquina. Para não esquecer das coisas, ler o jornal todos os dias. Quando encontrar uma pessoa : sorrir – só um pouquinho – e cumprimentar : boa noite boa tarde bom dia. Não olhar muito nos olhos, nem deixar cair logo o sorriso. Oh, poderia também dizer outras palavras. Sai daqui. Chega. Não enche. Não interessa. Que dane. Que se fo-
Mas. Ela já tinha descoberto o silêncio. E estava quase concreta. Tirou das pernas o último alento. Deixou o fogo e o frio equilibrarem as suas forças. Sentiu as costas se abrindo para o ar. A nuca repleta de nuvens. Pelo espaço atravessam as direções mais impossíveis. Ela pensou na palavra FIM. Logo a sua mente escureceu. Então era isso –

Fora despedida de um bom emprego. Fora despedida também de um emprego qualquer. Recessão, disseram. E ela teve a sensação pequena, como o sal queimando. Os sons ecoam e ela os reconhece. O desenho de infinitas estruturas. Afunda o rosto e os ouvidos na água. Chama os elementos que a fundaram viva. Afinal, era parte. Nunca acaba isso que termina. Ela lambe o que cria, sozinha, sozinha.

Está só. E está – em absoluto - como se não houvesse um amanhã em que não estivesse. Mas é ali – só - que movimenta o mundo. E segue o movimento dentro dele. E conjuga os verbos sem pensar no infinito.

Ah, se chegasse mais uma carta ! Se recebesse logo uma resposta ! etc etc etc ! Mas. Quando. A doce fúria da espera. A sorte.

Ela nunca teve medo. As suas mãos ficam quentes sempre que preciso.
Amanhã é um dia mais lindo porque ela nunca sabe onde –
Ela, que já aceitara os elementos, corre agora com os cabelos em tranças.
Viu-se alto de um rochedo. Reconheceu-se precipício.
Não teve medo. Pensou. Como tudo. Aqui. É.
E precisou chorar. Pois os seus pés não hesitavam mais.
Então –
Era muito dada. Mas na sua família não havia isso – de não ser.
Já amou tanta gente. Inclusive –
Lá pelas tantas – cantava.
Uma vez, chorou um pouco aos quatro ventos. Pois. Ansiava pelo chão. Era mulher marrom e negra. Branca de sonhos. Vermelha também na carne e no sangue. Que coisa. Lá fora a distância. Por dentro também. Como a língua fala pouco. E então. Nunca teve medo. Pensou. Quando. Mas o teto a sua frente parecia uma parede a mais e a janela –
De todas as coisas, ela só queria encontrar a palavra certa para isso : a vista. Para isso tudo que sentia – de ver. Mas pressentiu - como aqui tudo é ! Tanto. Não quis mais esperar que amanhecesse para começar o dia. Lá pelas tantas, ela já sabia. Claro. Os cabelos vão crescer com o tempo. E com o tempo tudo vai –

1.3.08

Canto de Cecília para um sábado de chuva



Murmúrio


Traze-me um pouco das sombras serenas
que as nuvens transportam por cima do dia!
Um pouco de sombra, apenas,
- vê que nem te peço alegria.


Traze-me um pouco da alvura dos luares
que a noite sustenta no teu coração!
A alvura, apenas, dos ares:
- vê que nem te peço ilusão.


Traze-me um pouco da tua lembrança,
aroma perdido, saudade da flor!
- Vê que nem te digo - esperança!
- Vê que nem sequer sonho - amor!



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Motivo da rosa


Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.

Rosas verá, só de cinzas franzida,
mortas, intactas pelo teu jardim.

Eu deixo aroma até nos meus espinhos ao longe,
o vento vai falando de mim.

E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.



(Cecília Meireles)