19.11.07

Mistérios de Clarice

Um pouco de Clarice, para alegrar (sim, Clarice também é alegria), o dia.



"Então fomos visitar o ministro e a família. Eles são todos ótimos. Só que são de outra espécie absolutamente. A senhora é do tipo da boa senhora, de boa família, simples, boazinha. mas eu vivo me contendo para não abrir a boca porque tudo o que eu digo soa "original" e espanta. Quero explicar o "original". Esta senhora tem pavor de original. Fomos ver uma exposição em de modelos em Viena (sem grande graça) e ela dizia: esse modelo é original mas é bonito. Falando de uma senhora inglesa que fazia muito esporte: ela é original, não gosto. Original é um palavrão. E quando eu quero dizer que não posso abrir a boca para não ser "original", quero dizer que se digo: que dia bonito, isso soa original. Quando falo, aliás, eles acham muita graça, ficam espantados, riem. E também procuro não me revelar. Por exemplo, ela, que é simples realmente, me disse: aquela casa de chá defronte do hotel é mal frequentada. Isso me avisando depois de eu ter ido lá. A casa de chá é muito bonitinha, com gente honesta comendo doce. O que se chama "mal frequentada" é porque não é frequentada pelos diplomatas e finuras da sociedade bernense. Então eu fecho a boca para nao dizer que continuo a frequentar. Os outros são simpáticos também. Mas eu me encontro com eles nos pontos em que começo a mentir. O que não importa, afinal."

Carta de Clarice, na bela biografia Clarice, uma vida que se conta, de Nádia Battella Gotlib.


E o link de um vídeo de Clarice no you tube. Além da última entrevista dela, disponível lá também.

http://br.youtube.com/watch?v=MT9I4tNnFDc

14.11.07

+ um pouco ...

Eu não esqueço de um aluno de Letras que mal conseguia escrever um texto ("tive uma péssima formação", ele dizia) e falava com os olhos brilhando que queria fazer a faculdade de Filosofia. Na verdade, fazia Letras para poder, depois, fazer Filosofia. Quem olhava o texto dele, só via a disparidade, a impossibilidade. A filosofia é um território exigente no plano da linguagem, da leitura, da escrita, da elaboração do pensamento, de tanta coisa que ele, naquele instante, não possuía, e sabia que não possuía. Mas, se a gente olhasse um pouco mais, via também o inconformismo. Uma pessoa que não se conformava em desistir de um interesse maior porque não tinha o mínimo. O sonho pessoal contra o pesadelo real da educação brasileira.
E fazia Letras na esperança de diminuir as forças contrárias do pesadelo e aumentar as do sonho.
Ai.
Tomara.

8.11.07

Sem medo de ter cultura

Ok, a minha idéia aqui neste blog não é falar de nada muito pessoal, a não ser o que está dentro e ao redor da literatura, o que mais amo nesta vida, o texto, a escrita. Estou dizendo isso não porque vou romper minha idéia inicial agora, não, vou mantê-la sempre, mas porque senti a vontade de escrever algo mais pessoal, que não envolve necessariamente a literatura, mas envolve a cultura de forma geral...

São situações simples, mas que dizem muito sobre a relação das pessoas (algumas? a maioria?) com a cultura hoje:
  1. Uma vez, comentei algo sobre não gostar de pagode, axé e derivados incluindo essas músicas americanas em lata e fui chamada de... elitista!
  2. Um amigo quase saiu no tapa com o DJ da festa do seu casamento porque ele não queria axé, funk carioca e derivados na sua festa, caramba, e foi chamado de... elitista. (Depois, fiquei sabendo por outras pessoas que essa queda de braço com o DJ é comum e que geralmente é ele que ganha.)
  3. Uma aluna comentou com as amigas que estava lendo Machado de Assis na faculdade e foi chamada de... elitista!
  4. Outro aluno confessou que às vezes erra de propósito a concordância verbal/numeral para não ser chamado de... elitista!
  5. No salão, uma senhora recusou a Caras e pegou na sua bolsa o seu livro encapado (ela podia estar lendo best-seller ou Shakespeare, não importa, o que importa é que estava lendo) e foi chamada de... elitista!
  6. Ouvi pessoas comentando, no ônibus, sobre Chico Buarque (!) e Cartola (!) como se eles fizessem música só para... elitistas!
  7. Numa roda, alguém comentou que não gosta do Big Brother, e outra pessoa duvidou, achando que no fundo, todo mundo gosta, mas disfarça. Quando a pessoa confirmou que não gostava mesmo, com os motivos e tal foi chamada por todos de ... elitista!
  8. Enquanto isso, o número de pessoas que abandona os estudos para trabalhar em profissões elementares aumenta escandalosamente.
  9. Enquanto isso, as redações nas escolas e vestibulares da vida estão cada vez mais ilegíveis.
  10. Enquanto isso, o número de pessoas que sabe ler e interpretar um texto diminui a cada dia. Então, a cada dia, textos simples vão se tornando cada vez mais difíceis e complexos.
  11. Enquanto isso, eu e meu marido somos constantemente olhados, praticamente apontados, nas ruas deste Brasil, seja na zona norte ou sul, por formamos um casal interracial.
  12. Nunca vi - nesta vida, neste mundo- uma inversão tão cruel e tão cínica do significado de uma palavra.



E um dia ela se levantou, exausta de realidade.