12.10.06

O LABIRINTO DA ESTANTE
(Crônica 1)
Claudia Lage


Estou em abstinência. Há trinta dias que não abro um livro, que não ponho uma única palavra nos olhos. Isso não é nada, pra muita gente. Mas, pra mim, que abro livros buscando afagos e atritos na pele, na imaginação, nos doze sentidos, é muito. Para mim, que durmo melhor com a palavra escrita do que com a dita, que não vejo imagem ou situação que eu não rumine e sofra em palavras e em silêncios, é um tempo impossível.
Tudo começou de um modo brusco, como sempre começam as surpresas. O inesperado é fogo. Fica a espreita como quem não quer nada e depois dá o bote, sem deixar brecha nem tempo pra gente se defender.
Eu estava num sarau literário. Todo mundo lia o texto de todo mundo entre chopes, risadas, petiscos, elogios ao vento, acanhamentos sinceros e cegas vaidades, quando escutei na voz de alguém um texto que me chamou atenção, não por que fosse bom ou ruim, mas porque me despertava uma sensação estranha, uma dor aguda nos dedos, uma aflição de pegar canetas e riscar paredes. Perguntei de quem era o texto e todos riram, tá brincando, tá de porre, tá de onda. Tô nada! Então, o inesperado baixou sem dó nem piedade: é teu, ora. Meu! Mas como eu não reconheci meu próprio texto?
Entendam. Mesmo sabendo que eu não via o texto faz tempo, que alguém tinha ele na gaveta e resolveu sei lá porque ler sem me avisar, mesmo assim: se eu não reconheci meu próprio texto, ele poderia ter sido escrito por qualquer pessoa.
E pior: ele nem me soou como vagamente conhecido, pior, ele apenas me despertou uma sensação estranha, como quem encontra um filho sem saber que é seu e sente um sentimento fundo, sem identificação. Vontade de ao mesmo tempo sorrir e de virar as costas.
Desesperei.
Peguei com tremor o texto maldito, o filho bastardo, e fuxiquei, farejei, virei do verso e do avesso. E vi: estavam ali as sombras de todos os escritores que me marcaram, numa miscigenação estranhíssima. Um ser amorfo que era tudo e nada, sem a marca de seu criador: eu. E eu? Procurei em cada frase. E eu? Não. Eu não estava ali.
Já dizem por aí que ando roendo os dedos, cuspindo unhas, fechando bares, chutando latas, mordendo asfalto, jogando teclados pela janela e assassinando PCs. Mentira. Tudo mentira. Apenas entrei de jejum de livros e ando arrastando os chinelos pela casa, olhando com espanto as estantes, ruminando um silêncio de leitura.
Sempre achei que ler me ajudaria a escrever. Li de tudo, engolindo estilos, mastigando imagens, saboreando frases, despudoradamente. E do que me serviu toda essa dedicação de entranhas? Para me perder num labirinto de linguagens e estilos? Para escrever um texto sem dono, sem voz própria, sem assinatura, sem eu?
Que exagero! riu minha amiga-que-não-é-escritora, substituindo a minha caneca king zise de café por uma xícara single de chá de camomila. Sério. Eu lia, crente-crente que me alimentava: absorvia sensibilidades, engolia estéticas. Não! Elas que me absorveram, elas que me engoliram, entende? As referências me abduziram! Minha amiga-que-não-é-escritora fez seu diagnóstico: muito simples: crise criativa. E, antes de sair: você só precisa digerir tudo isso. Minha amiga-que-não-é-escritora é nutricionista. De novo a sós com a estante, percebi que minha crise criativa era mesmo caso de má digestão. Estava com leituras do dedão do pé ao cocuruto da cabeça. Não havia um único espaço vazio, para que algo realmente meu pudesse se criar. Enjôo. Muito enjôo.
Vomitei. É uma metáfora, por favor. Vomitei palavras, muitas. Num jorro incessante. Escrevi de tudo, posso dizer que todos os escritores passaram pela minha mão. Me senti um médium que incorpora ao mesmo tempo em que finge incorporar. Finge e nunca foi tão verdadeiro. Será que é isso? A consciência de estar fazendo algo já feito, que nos faz sentir como se não estivéssemos realmente fazendo aquilo, como algo nosso, mas apenas imitando aquilo que já se faz, ao mesmo tempo em que lá no íntimo sentimos que da imitação surge alguma coisa genuína, que só quem faz de verdade pode fazer? E a sensação também, de que essa coisa genuína, pessoal, só surge porque se conheceu outras, para então conscientemente se destacar delas, e, enfim, ser?
No meio do labirinto de palavras, escrevi, de repente, estou aqui! Nunca senti, como nesse instante, que colocava no papel uma coisa tão minha.
Foi preciso voltar bravamente à estante e aos livros para encontrar num deles a confidência de um autor lido em todo o mundo, há dois séculos: a busca da própria voz é a angústia e a delícia de todo bom escritor.
O jejum estava terminado.

Cristal de Clarice - A palavra

Le miracle é um octógono de cristal que se pode girar lentamente na palma da mão. Ele está na mão, mas é de se olhar. Pode-se vê-lo de todos os lados, bem devagar, e de cada lado é o octógono de cristal. Até que de repente – arriscando o corpo e já toda pálida de sentido – a pessoa entende: na própria mão aberta não está um octógono mas le miracle. A partir desse instante não se vê mais nada: tem-se.
Para passar de uma palavra física ao seu significado, antes destrói-se-á em estilhaços, assim como o fogo de artifício é um objeto opaco até ser, no seu destino, um fulgor no ar e a própria morte. Na passagem de simples corpo a sentido de amor, o zangão tem o mesmo atingimento supremo: ele morre.

Clarice Lispector, A descoberta do mundo