24.10.07

3 X Artaud


Artaud subiu para o estrado e disse: O teatro e a peste. [...] Queria lembrar-nos que os dias de Peste trouxeram à luz um grande número de maravilhosas obras de arte e peças de teatro porque o homem, chicoteado pelo medo e pela morte, procurava a imortalidade, a evasão, tentava ultrapassar-se. Artaud largava de forma quase imperceptível o fio que seguíamos e começava, porém, a interpretar o papel de um homem a morrer de peste. Ninguém viu em que momento começou a fazê-lo. [...] os olhos dilatavam, enrijava os músculos, os dedos lutavam para conservar a flexibilidade. [...] Estava em plena tortura. Berrava. Delirava. {...] As pessoas começaram por ficar de respiração entrecortada. Depois desataram a rir. Toda a gente ria! Assobiava. Por fim, foram saindo uma a uma [...] a falar alto, a protestar. [...] Mas Artaud continuava, até o último suspiro. E lá ficou no chão. Depois, [...] veio direto a mim e [...] pediu-me para ir com ele a um café. [...] Ele ficara ferido, duramente atingido e desconcertado com as vaias. Espumava de cólera: Só querem ouvir falar de; querem ouvir uma conferência objetiva sobre o teatro e a peste, ao passo que eu quero oferecer-lhes a própria experiência, a própria peste, para ficarem aterrorizados e acordarem. Quero acordá-los. Não compreendem que estão mortos. A sua morte é total, como uma surdez, uma cegueira. Mostrei-lhes a agonia. A minha,sim, e a de todos que vivem.[...] Por vezes sinto que não escrevo, que descrevo os esforços de escrever, os esforços de nascer.
Para Artaud, morrer de peste não era mais terrível do que morrer de mediocridade, de espírito mercantil, da corrupção que nos rodeia. Queria que as pessoas tomassem consciência de que estavam a morrer. Metê-las à força num estado poético.
(grifos do original, de Anaïs Nin)

Anaïs Nin em fragmento extraído do livro Eu, Antonin Artaud, coletânea de textos de Artaud,p.18-20.
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Todo verdadeiro sentimento é na verdade intraduzível. Expressá-lo é traí-lo. Mas traduzi-lo é dissimulá-lo. A expressão verdadeira oculta aquilo que manifesta. Opõe o espírito ao vazio real da natureza criando, por reação, uma espécie de plenitude no pensamento. Ou, se preferirem, em relação à manifestação-ilusão da natureza ela cria um vazio no pensamento. Todo sentimento poderoso provoca em nós a idéia do vazio. E a linguagem clara que impede esse vazio impede também que a poesia apareça no pensamento. É por isso que uma imagem, uma alegoria, uma figura que mascare o que gostaria de revelar tem mais significado para o espírito do que as clarezas proporcionadas pelas análises das palavras.
Assim, a verdadeira beleza nunca nos atinge diretamente. E é assim que um pôr-do-sol é belo por tudo aquilo que nos faz perder.

(Artaud, Antonin, O teatro e seu duplo,p.94.)
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Quando recito um poema, não é para ser aplaudido, mas para sentir os corpos de homens e mulheres, eu disse os corpos, tremerem e agitarem em uníssono com o meu, girarem como se passa da obtusa contemplação do buda sentado, coxas instaladas e sexo gratuito, à alma, isto é, à materialização corporal e real de um ser integral de poesia. Quero que os poemas de François Villon, de Charles Baudelaire, de Edgar Poe ou de Gerárd de Nerval tornem-se verdadeiros e que a vida saia dos livros, das revistas, dos teatros ou das missas que, para captá-la, a retêm e a crucificam, e passe para o plano dessa imagem interna de corpos...

Carta de Antonin Artaud a Henri Parisot, mencionada por Cortázar em Morte de Antonin Artaud, Obras Críticas II, p.144.

10.10.07

Dostoiévski

Hoje entrei numa livraria e vi lá vários livros do mago russo em nova tradução, pelo professor Paulo Bezerra. Oba, boa desculpa para ler e reler o mestre dos subterrâneos e do humor triste. Perguntei ao livreiro se O adolescente havia sido traduzido também. Ele achava que não, mas prometeu se informar e me dizer depois. Fiquei por ali vagando entre as prateleiras me lembrando do meu primeiro encontro com Dostoiévski. Foi assim: eu tinha 16 ou 17 anos e era sócia da biblioteca Municipal de Niterói. Toda semana ou de 15 em 15 dias lá estava eu em busca de um novo livro. Gosto muito de lembrar dessa época, quando a minha relação com a literatura era simplesmente de fome. Eu não queria ler autor tal ou literatura do país tal ou da época tal. Meu Deus, eu só queria ler.
Então, entrando nas fileiras repletas de livros e poeira, fui vendo as lombadas aqui e ali até que me deparei com uma com o título O adolescente. Apenas isso. Apenas isso e eu tinha 16 ou 17 anos. Não conhecia o autor. Um nome esquisito, difícil à beça de falar. Peguei e levei para capa o livro de mais de 300 páginas acreditando que, pelo título, a história poderia ter quem sabe alguma coisa a ver comigo. Ingenuamente, comecei a ler. E talvez tenha sido ali entre aquelas páginas que uma parte de minha ingenuidade se foi. A narrativa, na primeira pessoa, é sobre um filho ilegítimo, criado entre estranhos. A sensação maior do personagem é que tudo em sua vida não lhe pertence, inclusive o seu nome. Lembro que simplesmente não conseguia parar de ler, acordava e dormia com o livro velho e empoeirado da biblioteca ao meu lado. No final, retardava a leitura para a última página demorar. Em nenhum momento pensei: quem é esse tal de Dostoiévski? Estava apaixonada pela história, pelo jeito da escrita, não pelo autor. Devolvi o livro no balcão da biblioteca triste de não poder deixá-lo em casa. Fiquei perdida sem saber qual seria o próximo que eu iria ler. O que eu poderia ler, depois daquilo? A bibliotecária deve ter percebido minha cara tonta e perguntou se eu queria alguma ajuda. Mostrei o livro que eu devolvia e ela me perguntou se eu tinha gostado. Fiquei assim muda sem saber o que dizer. Gostar não era bem a palavra, ou o verbo. Gostar a gente gosta de uma fruta, de um suco, de um garoto na escola. Eu tinha... amado? me apaixonado? Não sei. O livro tinha me deixado transtornada, comovida, deslumbrada, doída. Foi uma brutal experiência estética, sei hoje, talvez. Mas na época só sabia que tinha me enlouquecido. E talvez saber apenas isso seja realmente o bastante, mesmo hoje.
Eu e a bibliotecária acabamos nos entendendo. De um modo que não sei dizer qual foi, ela percebeu que eu havia "gostado" e então fez as devidas apresentações. Por sua boca fiquei sabendo que Dostoiévski era um grande escritor russo, do final do século XIX. E me mostrou outros livros dele. Não lembro exatamente porque, Deus queira que não seja pelo título, escolhi O idiota e sai da biblioteca repetindo o nome do autor com a sensação de que havia conhecido uma pessoa que me seria cara para sempre e com a frase da bibliotecária na cabeça: um grande escritor. Hoje, fico feliz em lembrar que antes de saber que Dostoiévski era um grande escritor para o mundo, nosso encontro às escuras já o havia tornado grande para mim.

4.10.07

Estranha ficção, fricção

Não deixa de ser instigante o fato de que meu livro tenha sido feito no vazio. E só por isso ele se fez. Quando comecei a escrever, estava cheia de informações reais sobre a história e os personagens. O "início-meio-fim" estabelecidos, embora o "como" não estivesse. Escrevi quase cem páginas que acabaram no lixo. Eu seguia os passos dos eventos como salva-vidas dispersos na imensidão do mar. Então, lembrei do meu processo com os contos. As histórias saiam do nada, uma imagem, uma idéia, um clima, uma atmosfera, uma pequena situação, uma frase que puxava outra. E, enquanto escrevia, a pergunta constante, e agora? e agora? E a história se fazia, da forma que necessitava se fazer. De certo modo, eu não tinha muito a ver com isso. Ia sendo levada, me deixando levar, seguindo as pistas que a própria escrita me dava, me ajeitando ao seu modo, decifrando a sua língua, confiando que de alguma forma iria chegar ao ponto final, embora nao soubesse muito bem como, e colaborando na medida do possível para que meus sustos, angústias e receios não atrapalhassem o caminho.

Lembrando disso, joguei as cem páginas no lixo e respirei fundo. Larguei as pesquisas e respirei fundo. Afoguei os salva-vidas no mar e respirei fundo. Esqueci que meus personagens foram pessoais reais e respirei fundo. Matei a idéia de que contava uma história "acontecida" e respirei fundo. Muito fundo. Destrui todas as certezas, todos os fatos estabelecidos e comecei. Fui escrevendo como se não houvesse nada a minha frente. O vazio. Foi preciso destruir toda a lógica consensual do que seria o enredo, foco narrativo, os personagens, blá blá blá e etc e tal para não ter nada nas mãos, a não ser a imaginação e a linguagem.

E agora? E agora? Comecei a me perguntar a cada página, a cada novo dia diante do PC.

Então, de alguma forma obscura, suspreendente para mim, as palavras vieram e o romance se fez.

Foi exatamente isso: no momento em que se tornou imprevisível, aconteceu.