26.2.08

Um momento rodriguiano: sobre o novo-escritor

Não posso ler muito o Nelson Rodrigues. Principalmente as crônicas, não posso. E tenho lido. Muito. É uma questão de sobrevivência. As crônicas do Nelson me divertem, são mais eficazes contra o stress do que a meditação e a yoga. Decidi que, daqui para frente, nunca mais vou a yoga. Na hora da aula, acenderei o incenso, sentarei em lótus e lerei Nelson Rodrigues.


Bem, mas falo isso porque quando leio Nelson Rodrigues fico contaminada com a sua fina e cruel ironia. A sua vontade de falar o que deve e não deve. E a questão é que tenho pensado muito na Geração Paissandu que o grande escritor cita em suas crônicas. É a Geração de artistas de esquerda, que, na década de 60/70, freqüentava o cinema Paissandu, no Flamengo. Segundo Nelson, é uma geração de cineastas sem filmes, escritores sem livros, pintores sem telas, atores e atrizes sem peças, filósofos sem filosofia, e por aí vai... Todos, no entanto, profundos intelectuais. Nelson não suportava esta Geração que colocava Marx, Fidel e Che na frente da criação artística. Entretanto, apesar de colocá-los na frente, a única coisa que faziam era posar ao lado das idéias dos grandes líderes. Para a Geração, era o suficiente sair de casa, ir ao Paissandu e falar de Marx, Fidel, Che e dos livros geniais que nunca escreveriam, dos filmes geniais que nunca filmariam, etc... Para Nelson, a geração Paissandu era apenas e simplesmente uma pose monumental.


E vejam, tenho pensado muito na Geração Paissandu e de repente, navegando pela Web, me deparo com uma entrevista com novos escritores (o Nelson colocaria um hífen entre as duas palavras e emergiria daí um personagem). E a declaração bombástica de um deles (Nelson diria os nomes) é que a vantagem de sua geração é que ela não precisa conhecer o passado literário. Estão, finalmente e simplesmente, livres para criar. Nelson Rodrigues falava muito dos idiotas da objetividade. Aqueles que falam os maiores absurdos na mais inocente cara-de-pau. Ou aqueles que falam as coisas mais óbvias com o ar e a pose de um Rimbaud. Aqui, no caso, o novo-escritor falava sinceramente. Realmente achava que a ignorância era libertadora. Essa idéia confusa que une a ignorância à liberdade, Nelson não perdoaria. Ainda mais dita pelo “O jovem”, personagem conhecido das crônicas rodriguianas. Pois, como o jovem rodriguiano, o novo-escritor, com a potência de sua juventude, despachou todo o nosso passado literário com um peteleco só. Passado antigo ou recente, não importa, foram enxotados da literatura contemporânea todos os nossos escritores. Restou apenas ele, o jovem, com o seu texto livre, livre, livre.


Dói e cansa falar o óbvio, dizia Nelson Rodrigues, e dou as mãos a ele em seu cansaço e dor. Se conhecesse o passado literário, se tivesse referências de escritores, paradigmas erguidos e rompidos, para dizer o mínimo, o jovem novo-escritor teria poupado a si mesmo e aos caros leitores da declaração seguinte, que lhe pareceu vir de uma reflexão profunda e reveladora: “estamos renovando a literatura brasileira”, ele disse. Nessa hora, sobre o meu computador, baixou um mau tempo de quinto ato do Rigoletto. Um padre de passeata atravessou correndo o quarto. Um pigarro imaginário sufocou minha garganta. Senti revirar no estômago a úlcera que não tenho, e que Nelson Rodrigues acalmava todas as madrugadas com papinhas e mingaus.


Claro, claro, o jovem novo-escritor renova a literatura brasileira instaurada por ele mesmo: a de uma geração só. Assim, enterrados Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Cornélio Pena, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Hilda Hilst, Castro Alves, Autran Dourado, Graciliano Ramos, José de Alencar, Murilo Mendes, Lygia F. Telles, Lima Barreto, Qorpo-Santo, Monteiro Lobato, Érico Veríssimo, Aluísio Azevedo, Manuel Bandeira, Lúcio Cardoso, Raquel de Queirós, Adélia Prado, Sérgio Sant’anna, Cruz e Sousa, Paulo Leminski, Caio Fernando Abreu, e o próprio Nelson Rodrigues, - só para citar alguns escritores entre tantos outros que contribuíram, acrescentaram ou até mesmo transformaram a nossa literatura,- então, enterrados todos, é possível, é fácil, é rápido, ser renovador, ousado, original, genial.


Depois de ler a entrevista, interrompida no meio, confesso, só me restou voltar às crônicas rodriguianas, para acalmar os ânimos, e torcer, diante de círios ardentes, para que a opinião do jovem novo-escritor seja tão solitária como a geração que ele proclama, e não ganhe ares do estádio Mário Filho em dia de Fla x Flu.

12 comentários:

Marcelo Moutinho disse...
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Marcelo Moutinho disse...
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Marcelo Moutinho disse...

Corretíssimo. O problema da ignorância (sobretudo a que estimula batidas no próprio peito) é provocar aquele sentimento descrito pelo Harold Bloom: o cara pensa que é "Adão, de manhã cedo, no paraíso" e que não houve nada antes dele. Daí as vanguardas e os experimentalismos natimortos que vemos hoje.

(por favor, apague os anteriores, que saíram com erro)

Manoela Sawitzki disse...

... começa a ficar aborrecido esse negócio de vir ao teu blog só pra concordar com você. Porque é o que acontece: venho e... concordo, concordo, concordo!

Doeu e cansou também aqui, Claudinha. A úlcera, que também não tenho (quase tive), deu sinais de piora, o pigarro (nem tão imaginário) entalou na garganta...
Tá certo, tá certo, a expressão é livre, precisa ser, mas... quem nos livrará de que idéias como aquela façam filhotes?
E se esse tal Jovem aparecer no Jô e no Altas Horas dizendo o mesmo? Ou, pior: e se um grande irmão inteleca aparecer depois da novela das oito com seu último livro nas mãos, muito compenetrado no livre exercício da contemporaneidade, enquanto os demais rebolam fantasiados de gueixas e samurais?!!!
Multidões incautas o seguirão?!!
Fogueiras de “quinquilharias” literárias serão feitas em pátios de escolas, sebos atacados e destruídos?!

Já podia ouvir as trombetas do apocalipse, e pensava em correr até o Baratos da Ribeiro pra salvar algumas relíquias, quando me dei conta de que não. Não mesmo. Nenhum risco de motim.
Porque o que marca idéias como a desse sujeito é justamente a prostração de espírito. Basta lançar um olhar levemente debochado e blasé ao Seu Guimarães e sua patota de ultrapassados. Só existe o hoje.
E, assim, mata-se mais dolorosamente a literatura.

Bem, em todo caso, se a idéia pegar, pelo menos as gerações futuras estarão livres da obrigação de ler o nosso caro Jovem Autor.

Um longo suspiro cúmplice da amiga (e, desculpa, não deu pra escrever um post menos longo)
Manu

Claudia Lage disse...

Ótima essa imagem do Adão, aquele q proclama um novo mundo a partir da sua existência.

Valeu, Marcelo, pela visita e por compartilhar este momento rodriguiano.
um bj
Claudia

Adriana Lisboa disse...

Clau, isso de não precisar conhecer o passado literário na minha opinião é preguiça de ler. Ou então falta de ânimo para se afastar um centímetro do próprio umbigo. O que dá no mesmo. A gente escreve porque lê. A gente lê porque se interessa pelo outro. Não é mais ou menos isso?
Não acredito em escrita inocente. É preciso conhecer o passado literário sim, e conhecer muito bem.
beijinhos do frio.

Claudia Lage disse...
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Claudia Lage disse...

Oi, querida!!
Que bom vc por aqui!
Obrigada por vir aqui neste momento rodriguiano. Nelson te aplaudiria por dizer o óbvio esquecido, o óbvio essencial, que não é mais visto e por iso, precisa ser dito e repetido sempre. Antes de tudo, a gente lê e escreve pelo interesse pelo outro. E ponto. Isso não implica em outro olhar sobre tudo, - um olhar mais generoso, mais interessado- inclusive pelo passado literário?
um beijo, Dri!

Claudia Lage disse...
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Claudia Lage disse...

Manu, darlin!
Estava pensando nisso tb, veja só Guimarães e Clarice, que são, na minha opinião, dois grandes escritores brasileiros e universais, têm recebido este olhar levemente debochado e blasé... Provavelmente eles próprios negassem a posição de cânone (Clarice, certamente), mas de certa forma, não estão canônicos à toa. Eles modificaram a narrativa brasileira! É a dimensão de um trabalho que vai além de ter livros publicados!
Nessa perigosa época de celebridades, é preciso diferenciar o devido reconhecimento de um artista com a contestação do que é valorizado por ser "moda" ou "clássico".
Guimarães e Clarice ( e outros) estão além disso!!!!!!!!!!!!!

Anônimo disse...

Cláudia,

Que perfeito você ter tocado nesse assunto e nessa úlcera geral. E ter se dado ao trabalho de tratar como assunto de reflexão aberta o que nasceu, de fato, com outra natureza.

Porque acho mesmo o seguinte: a tal entrevista que provocou a sua reação não é outra coisa senão o hábito do marketing pessoal delirante e cara-de-pau, auto-promoção convencionalíssima. Mais isso, acredito eu, do que exatamente inocência ou ignorância. Mais isso até do que arroubo narcisista juvenil.

Que esse tipo de declaração de um "novo-escritor" ganhe espaço com tanta facilidade e pareça ainda ter algum charme na mídia, é o que constrange mais, e deixa mais patente a fratura profunda no vínculo suposto (e tão falso) entre mérito público e qualquer brilhareco egóico.

Unknown disse...

"Nelson Rodrigues falava muito dos idiotas da objetividade. Aqueles que falam os maiores absurdos na mais inocente cara-de-pau. Ou aqueles que falam as coisas mais óbvias com o ar e a pose de um Rimbaud."

Adorei essa imagem, Cláudia. Fundamental pra angustiar menos meu sentimento por essa pessoas.

Fiz oficina de criação com você em Três Corações, e não esperava encontrar por aqui um texto tão deliciosamente ácido.

obrigada.
=]