2.6.07

A PEQUENA MORTE_ O conto

Uma aluna me falou do espanto (ainda, o espanto) que sentiu ao ler o conto que dá título ao livro, A Pequena morte e outras naturezas. Ouvi as impressões que ela teve na leitura com uma estranha sensação. Imediatamente, me transportei para a época em que escrevia o conto. Me vi diante do computador, escrevendo. Me vi digitando as frases hoje tão conhecidas para mim e que na época me vieram aos pulos. Me vi assustada com o que escrevia e com o que sentia ao escrever.Lembrei como este conto mexeu comigo. Eu tinha esquecido disso. Este conto me virou do avesso, me tirou peles, cascas, revirou feridas. Depois dele, eu estava diferente. Eu o reescrevi por quatro anos, entre indas e vindas, pausas e retornos. Com ele, experimentei tantas coisas, sobre mim mesma e sobre a escrita. Como pude esquecer? Não lembrar é como se eu tivesse me tornado outra escritora. E eu sei, como sei, que - dentro do pouco tempo livre e da louca rotina de compromissos urgentes sem a menor urgência - continuo essa pessoa que mexe com as palavras e é mexida por elas; que passa pela escrita como uma experiência; que atravessa a história e chega no outro lado, modificada; que vibra, como depois do sexo.

Para quem não conhece, deixo aqui uma palhinha da Pequena Morte, com saudades, muitas saudades, desta moça que o escreveu.


A PEQUENA MORTE

Ela apenas sabia : No início, era uma menina.
Uma menina que foi crescendo com uma angústia das grandes.
Quando cresceu para sempre, percebeu que não tinha tamanho. Não tinha limites para o que sentia. Seu coração arrebatava-se com a vida. Espantava-se com tanto. Tinha fome, de tudo, por tudo. Olhava o mundo com os olhos arregalados. Se pudesse, morderia as carnes, possuiria as matérias. Mas, geralmente, apenas passava o olhar sobre todas as coisas, consumindo-se com o que não podia consumir.
Pensou na menina de tranças que fora.
Lembrou que quando pequena tinha uma brincadeira predileta : caçar formigas.
Enquanto mastigava o chiclete ia esmagando as formiguinhas. Fazia isso sem pensar, quase sem saber que fazia. Quando descobriu que matava e ainda, assim, tão distraída do próprio crime, rodopiou até não agüentar ver tudo tão torto. E caiu aos pés do formigueiro.
Deitada, sentiu o movimento das bichinhas sobre a terra. Próximas de suas pernas, de seu rosto. Teve medo. Mas o seu coraçãozinho apertava-se era de culpa. Resolveu não se mexer. Percebeu que o aperto no peito era mais uma sensação do que uma certeza. Achou que sentiria melhor a culpa se a sentisse na carne. Estava decidida a enterrar a cabeça na terra, a entregar o seu corpo às formigas. Então, muito lentamente, abriu os braços, para receber o castigo. Também apertou os olhos até onde pôde. Queria sentir muita dor.
Ao chegar em casa, correu para a cama, onde ardeu de febre, de desvarios.
Doíam-lhe as picadas, a culpa.
Depois, foi com uma agonia mortal que se levantou e, em passos muito lentos e
desequilibrados, como ainda em delírio, se dirigiu, tonta, tonta, para o quintal. Certa de que não havia outro lugar para ir.
No início, sentia pena das formigas mortas.
Mas logo afligia-se com as vivas.
O prazer, ou melhor, o alívio, era maior do que a pena.
Melhor do que brincar de boneca era brincar de formiga.
Ou então, de galinha.
Não, não matava galinhas. Quem fazia isso era a empregada Jacira. Ela apenas as via morrer. Precisava vê-las morrer.
Quando ouvia que teriam frango para o almoço, corria para o quintal atrás de Jacira.
Primeiro, só as olhava.
Achava-as lindas assim tão inocentes do seu destino.
Depois, observava cada uma, tentando adivinhar qual delas seria a vítima.
Então escolhia a de cara mais espantada.
E vinha Jacira sem erro na galinha escolhida.
Era sempre assim.
Jacira insistia para que ela voltasse para casa, mas ela teimava em assistir tudo até o final. Gostava de ver o bicho lutando. Também gostava de vê-lo perder as forças. Mas, principalmente, o que mais gostava era quando ele se entregava à morte. E o seu olhar era tranqüilo e certo. Ela esperava até ver toda a agonia terminar no último suspiro.
Terminava também a sua agonia. Era o alívio.
No almoço, era com curiosidade e prazer que mastigava a carne da vítima. Procurava o gosto da morte entre os temperos. Cultivava em segredo uma mania : sempre fechava muito bem os olhos antes de engolir. E nunca comia um pedaço só. Também fazia questão da carne mal passada. A sua mãe sorria e elogiava o seu apetite. Ela também sorria. E olhava os adultos. Perguntava-se se eles se sentiam assim tão febris e felizes como ela. Mas eles comiam de um jeito tão distraído de matar formigas que ela percebeu que era inútil perguntar. Eles não sabiam.
Não sabiam o que ela sabia. Ela, que sentia uma parte quente do mundo dentro de si, intuía algum mistério que ainda não tinha nome em seu vocabulário. Mas era bom, muito bom.
Lembrou de um outro episódio : Estava deitada na grama, feliz, entre as formigas. Abraçava o chão, de barriga para o centro do mundo. Respirava a terra, de costas para o céu. Foi então que caiu bem na sua frente, a alguns centímetros da sua cabeça, um passarinho ferido, quase morto. Um menino veio correndo. Ele parou ao seu lado e inclinou-se atento sobre o bichinho.
Ela viu o estilingue em suas mãos.
O que sentiu, nem depois, com mais idade e palavras, pôde descrever.
Era o terror. O encanto.
Aproximou-se do menino. Esperaram juntos, de cabeças unidas, a última respiração do passarinho.
Quando o bichinho morreu, ela suspirou forte demais para uma menina.
Ele então a olhou pela primeira vez. Um olhar para sempre.
Mas logo inclinou-se, pegando o passarinho. E carregou-o com tanto cuidado e delicadeza que ela, hipnotizada por esse gesto, não conteve a sua dúvida.
- Foi você, não foi ?
Mas ele não disse nada.
- Por quê ? – ela insistiu.
E esperou a resposta que poderia salvá-la para sempre. Mas ele não lhe deu atenção, já estava longe.
Ela olhou o pequeno sangue na grama.
Ainda o viu antes de descer a ladeira. O seu primeiro amor.
Correu e alcançou-o mais adiante.
Lá estava ele, com uma pedra na mão, cavando um buraco na terra.
Ela aproximou-se, tímida.
- Posso ajudar ?
Ele deu de ombros.
- Pode.
Ela ajudou, maravilhada. Colheu flores para o velório, lembrou de uma oração para o enterro. Cantarolou baixinho, enquanto o observava. No meio da cerimônia, olharam-se, numa espécie de êxtase.
Ele tinha o jeito dos que sabiam.
Levou-o ao seu quintal para verem juntos Jacira com as galinhas.
Ele, como ela, adivinhou qual delas seria a vítima.
Ele, como ela, mastigava muito antes de engolir.
Ele, como ela, também se divertia com as formigas.
Estavam unidos para sempre.
Mas, um dia, se separaram. Foi no início da adolescência, quando a família o levou para longe. Ela se despediu, em prantos. Dentro do carro, ele a viu desaparecer no vento e na poeira da estrada. Pela primeira vez, tiveram medo de permanecerem sempre famintos. Eram crianças, mas já percebiam o que os mantinham vivos. Ele corroeu-se todo por dentro. Ainda não tinha aprendido a chorar.

A chorar ela aprendeu logo. Foi crescendo rápido entre as lágrimas e a raiva. Não tinha diversão que aplacasse a sua fúria. Não tinha pessoa que a fizesse esquecer. Estava sozinha.

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