5.10.08

Por uma alegria genuína

Sempre que volto às aulas de criação literária na Estação das Letras, tenho uma espécie de reencontro feliz com a literatura. Especialmente quando as turmas são compostas de pessoas que realmente gostam e se interessam pela escrita. E apenas ela. E só ela.


É de uma alegria quase infantil, o coração descoberto, ver, ouvir e falar com essas pessoas, de profissões tão diversas. Jornalistas, advogados, músicos, engenheiros, professores, psiquiatras, só para citar algumas, e também universitários, estudantes do ensino médio, gente de todas as idades e todos os tipos, que não querem necessariamente publicar um livro, não querem seguir carreira literária, não querem ganhar prêmios, ver os seus nomes impressos e nem tudo o mais que envolve os arredores literários. O que eles querem, então, afinal?


Eles querem escrever.


Sim, apenas isso. E olhe, não é pouco. Há muitos caminhos a serem descobertos a partir desse desejo. Vejo a alegria genuína neles ao descobrirem. Sinto a alegria genuína de estimular e acompanhar essas descobertas. Quando encontro pessoas assim, turmas assim, é uma festa. Uma verdadeira celebração da escrita. Sei que nem todas as turmas são desse jeito. Realmente, é deprimente quando vemos pessoas mais interessadas em afirmar o ego por meio da escrita do que em escrever, mais concentradas em atiçar vaidades e derrubar conquistas alheias do que mergulhar no processo da escrita, que é único, pessoal, intenso e extremamente vulnerável.


Em 2003, fez dez anos que escrevi o conto que marcou, para mim, o início de um caminho mais pessoal na escrita. Escrevo desde pequena, mas a partir deste conto, A hora do galo, comecei a ter mais consciência da linguagem, da textura da escrita, do ritmo, do que é buscar uma voz singular. Em 1996, este conto foi premiado em um concurso da RioArte. De 1993 a 1996, escrevi outros contos, tentando encontrar a minha voz, tentando escrever e apenas isso. Em 1996, questões pessoais, a falta de tempo, a incerteza em assumir a escrita de um livro, a doação do tempo necessário da vida para isso (não há ilusões: se você não é rico ou algo parecido, o tempo para escrever um livro não existe, ele precisa ser cavado no cotidiano. Ele precisa ser retirado de algum lugar), e tantas outras dúvidas me afastaram da escrita. Estava me formando em Letras e em Teatro, e dois futuros incertos me pesavam. Um amigo então me falou do concurso, e nem pensei em participar. Me inscrevi no último dia, com o pensamento místico de que o resultado daquele concurso seria um sinal para mim. Apenas isso, um sinal. Eu não estava pensando em "vitória", em nada disso. Naquele momento de escolhas e definições, eu apenas precisava desesperadamente saber se o meu amor pela literatura era de alguma forma correspondido. Se não era platônico, com tinham sido outros amores. Como a música, como até o teatro parecia ser. Então, quando saiu o resultado e o meu conto foi premiado, foi muito mais do que qualquer vitória, mais do que ter o sentimento de que ali havia um caminho, foi como ouvir, num sussurro, "eu também". Podia ser um amor bandido, esquisito, incerto, repleto de inseguranças e expectativas, mas ele existia. E, às vezes, só saber que o amor existe já basta.


Claro que se o conto não tivesse sido premiado, eu continuaria a escrever, e cedo ou tarde viriam outros sinais para as minhas dúvidas e angústias. Mas era como se eu tivesse forçado o destino... Se eu contar até dez e uma mulher grávida virar a esquina... se hoje fizer sol... se o telefone tocar daqui a pouco... se... se... por acaso ou por sorte, aconteceu.

De 1996 a 1998, escrevi e reescrevi os contos pensando em um possível livro. Em 2000, o livro foi publicado. E de lá até hoje, depois de muitas lágrimas, suor e cerveja, a escrita está cada vez mais frequente em meus dias, ganhando pouco a pouco mais espaço e tempo, mais tranquilidade e prazer. E nesse tempo todo, desde que escrevi sem a menor expectativa de entrar no "mercado", anos atrás, até agora que escrevo com a consciência dele, não há a menor dúvida que é a escrita que continua movendo tudo. É a escrita. E só ela. Por isso, a alegria genuína ao encontrar pessoas que escrevem porque escrevem.

A ironia de tudo isso é que, com ilustres exceções, encontro essa alegria genuína com a literatura mais em pessoas que não tem pretensões literárias, não se dizem escritores e não publicam livros. Como eu disse, pessoas das mais diversas profissões. Não vejo essa alegria quando vou a um congresso, não vejo em escritores falando de seus livros e seus processos de criação. Novamente, com ilustres exceções, não vejo nem mesmo um rastro de fagulha. Vejo um bocejo em tudo. Ou um savoir-faire forçado em relação à escrita. É certo que cada um tem seu jeito de lidar com cada coisa. Mas sinto falta de partilhar a alegria e mesmo as angústias de um amor em comum.

Ou talvez hoje eu esteja muito sentimental.

De qualquer forma, Cortázar dizia o seguinte, "Com toda a honestidade, declaro que nas poucas vezes em que precisei ficar em tais sanatórios de literatura voltei para a rua com um enorme desejo de tomar vinho num bar olhando as garotas passando nos ônibus. E a cada dia me parece mais lógico e mais necessário ir à literatura - seja na condição de autor, seja na de leitor - como se vai aos encontros mais essenciais da existência, como se vai ao amor e por vezes à morte, sabendo que fazem parte indissolúvel de um todo e que um livro começa e termina muito antes e muito depois da sua primeira e última palavra".

E como é bom isso.



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6 comentários:

eduardo disse...

Neste sábado solitário, estava aqui pensando em criar um blog como terapia para purgar mais uma desilusão amorosa. Depois pensei se valia a pena ocupar espaço na WEB com algo que só tem importância pra mim. Resolvi então fazer uma nova visita ao blog da Adriana Lisboa, de quem já sou leitor (dos livros), pra me situar.
Acabei descobrindo seu endereço e me identifiquei com o que li. Nos momentos críticos da minha vida a leitura de romances, contos e ensaios tem me mantido vivo. Gosto do Italo Calvino em "Amores difíceis", do Antonio Tabucchi em "ESTÁ FICANDO TARDE DEMAIS", da Adriana Lisboa em "Rakushisha".
Concordo com você, sem paixão nada vale a pena.
Segunda-feira vou partir em busca do "A pequena morte". Pra continuar vivendo.

Claudia Lage disse...

Eduardo, muitos livros também já me salvaram, em momentos difíceis, ou até mesmo naqueles momentos aparentemente calmos, em que o inesperado de uma frase ou história nos pega de surpresa. Cavuca um lugar na gente adormecido. Agora mesmo tenho lido muito o Caio F. Abreu, e o seu comentário me levou aos últimos posts. Obrigada por ter vindo aqui e por suas palavras, assim vamos sobrevivendo.
um beijo
Claudia

Anônimo disse...

Cláudia,

Foi com um aperto no coração que li seu post - só hoje.
O tempo a ser cavado, não é?
Aí você vem, sempre com essas coisas escritas que salvam a gente, e às vezes fazem isso justamente porque dão mais nitidez a um certo desespero.
Você, nesse sentido, é sempre como aquela mulher grávida de que você falou, um súbito sinal e um talismã que, enfim, começa a dobrar aquela esquina.

Cristiane B.

Rodrigo M. Freire disse...

Cláudia,

Vc deveria acionar a ferramenta seguidores no seu painel de controle. Tem? Vou olhar novamente. Nem sei como foi que a reencontrei depois de algum tempo lendo algumas coisas por aqui. O caso é que eu gostaria de receber notificações de suas atualizações.

E então?

Rodrigo M. Freire disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Rodrigo M. Freire disse...

Pois então!
E eu do lado de cá, aluno, torcendo pra encontrar uma professora como vc, que ame o que faz. Quem sabe a gente ainda se cruza no espaço físico ou na literatura. Espero, antes que eu sofra a minha Pequena Morte.rs.

Por um dia, e enganado(?), é que, no primeiro período de literatura na estácio, entrei numa turma sua. Acho que era "produção textual".

Para mim é muito mais fácil, embora não seja fácil, encontrar uma professora apaixonada, pois se chegou até tal ponto. Alguns professores estão corrompidos por um sistema comercial da educação que nem vale a pena descrever aqui.

"Para vc?" Precisa achar uma turma (coletivo de alunos)... com alguns apaixonados! vc tem mais chance se precisar só de um apaixonado por turma para encantar-se.

Tenho um "grito" a que o sistema é indiferente, mas grito por gritar:

_Cláudia, olha eu aqui!

Um abração!