13.10.08

Lendo Caio, sobrevida.



"Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas.

(...)

Deixa eu te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver nascer uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente.

(...)

Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende?"

Trechos de Para uma avenca partindo (O OVO APUNHALADO)


" Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome." (Trechos de Pequenas epifanias)



"e tudo que eu andava fazendo e sendo eu não queria que ele visse nem soubesse, mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo, por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era." (Além do Ponto, em Morangos Mofados)


"Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de "minha vida". Outros fragmentos, daquela "outra vida". De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos." (Trecho de Dois ou três almoços, uns silêncios)



5 comentários:

Marcelo Moutinho disse...

Me sinto bem cada vez que volto a ele. Dia desses li a biografia que acabou de sair. E me peguei emocionado muitas vezes.

Claudia Lage disse...

Ah, Marcelo, estou numa fase totalmente Caio...! Tudo começou quando decidi reler "Os dragões não conhecem o paraíso", livro que amei há uns dez anos... e não consegui parar... Ele tem um jeito muito próprio de escrever, muito íntimo, é comovente. A biografia é a próxima leitura.
Valeu pela visita, e um beijo!
Claudia

Marcelo Moutinho disse...

Adoro "Dragões". Adoro. Com "Pedras de Calcutá" e "Morangos mofados" forma minha tríade preferida. Me emociona aquele otimismo (dentro do pessimismo) do conto final de "Morangos"

Rodrigo M. Freire disse...

apreciei os trechos.
muito válido o post.

januario disse...

Oi Cláudia,primeiramente dizer que adorei o blog .Em segundo dizer como Caio tem a capacidade de gerar noçao de afeto e sensibilidade .Sou um leitor amante da sua obra e quando vejo algo,tudo me parece familiar.
O ultimo que li foi limite branco,coincidentemente,o pimeiro livro escrito por ele,afe !!
Parabéns pelo blog e pelos textos