21.12.07

CONTO DE NATAL

Há alguns anos escrevi para a ótima e extinta revista Veredas do CCBB um conto de natal. Mais cinco escritores participaram: Luiz Ruffato, Marçal Aquino, Luiz Villela, Rafael Cardoso e Miguel Sanches Neto. É curioso que os textos, inclusive o meu, não são nada otimistas. E mais curioso ainda que eles cairam na rede e são veiculados por aí, como um "belo conto de natal".


Para ler todos os contos:
http://www.paralerepensar.com.br/natal_contos.htm


Porque é.



Andou com pressa sem hora marcada para nada. Virou as esquinas pensando em como era bom virar alguma coisa. Tropeçou num treco qualquer no meio do caminho e só depois viu não se tratar de uma pedra. Os jornais que embrulhavam a pessoa deitada anunciavam uma liquidação imperdível. Ótimo. Tinha mesmo que comprar presentes. Corra, corra, não perca! Imediatamente, correu, embora não soubesse o endereço. Passou por uma mulher linda, um homem lindo, uma criança linda. Pensou: o mundo é bom. E a cidade cintilava com as luzes extras sem nenhuma beleza nem economia.

No meio da multidão, esbarrou em alguém que conhecia. Rapidamente, não se cumprimentaram. Na esquina, desejou felicidades à mocinha que lhe vendeu um sanduíche. Depois, sentiu, de repente, uma alegria. Mal podia esperar a noite. Gostava da comilança, da família reunida. Nessa hora, cresceu um buraco em seu peito que o fez logo pensar em doenças. Em seguida, imaginou curas. É o susto do tempo. De tudo parecer a mesma coisa. E é também a dor desse susto. São as horas corridas que se adiantam tanto, e para quê? Para todos os anos caírem sempre no mesmo dia. Era o que pensava. Só esperava que, se alguma vez morresse, fosse quando estivesse muito, mas muito doente, pois achava morrer saudável um verdadeiro desperdício. Calculava, no futuro, que seria capaz de saborear cada instante. Em pequenas ambições, vislumbrava roçar a carne vida.

Olhando assim, é uma pessoa como outra qualquer. Carregando um desejo como qualquer outro. Arrastando e alimentando o desejo. Deixando ele crescer. Invadir o peito, arrepiar os pêlos, subir à cabeça, desfiar os cabelos. É um perigo querer tanto assim. Talvez seja a época do ano. Você sabe. Aquela que nos faz gastar o dobro do dinheiro que temos. Aquela que nos faz pensar neles. No homem que morreu na cruz e no que anda pelo mundo inteiro, por incrível que pareça, de trenó. Um teve, no peso de sua dor, a dor de todos. O outro, velhinho, vive até hoje num lugar muito longe e frio. Coitados. E ainda têm que agüentar os teus pedidos. Esses desejos que vocês carregam, arrastam, alimentam. Vejam só:

Carregar - Ato de levar ou conduzir uma carga. Tornar sombrio, triste. Tornar mais intenso, mais forte. Exercer pressão sobre.Arrastar - Ato de levar à força. Mover com dificuldade. Rastejar. Falar morosamente. Atrair, trazer atrás de si.Alimentar - Dar alimento a. Nutrir, sustentar, conservar. Incitar, incrementar. Manter, prover.

Então o homem carregou os presentes até em casa, a mulher deixou mais forte o tempero da comida, o avô moveu com dificuldade a própria perna, a avó alimentou as crianças, e a menina comeu tudo, nutrindo a expectativa de enfim, naquele dia, ganhar um presente impossível porque era Natal.

Então o avô conseguiu sustentar com o próprio corpo o peso dos anos, a mulher falou morosamente com o marido, o homem exerceu pressão sobre a esposa, trazendo-a atrás de si até o quarto, a avó rastejou a história mais comprida para as crianças, e o menino deu alimento a cada palavra, achando que naquele dia tudo em casa estava mais calmo e bonito porque era Natal.

Então a menina sustentou que Papai Noel não existia, o menino incrementou achando que aquela barba de algodão era mesmo patética e ridícula, o avô tornou-se sombrio porque perguntava e ninguém respondia, a avó incitou a filha a cuidar dos filhos e da cozinha, a mulher entristeceu, pois ela e o marido às vezes não se entendiam, o homem carregou o medo de perder tudo aquilo que nem tinha tanta certeza assim de que tinha, e todos prometeram evitar discussões naquele dia porque era Natal.

A pele brilhava. Perfeita. Se a levantasse apenas um pouquinho, encontraria a carne branca e macia. Igualmente perfeita. Nesse momento, a boca certamente já estaria transbordando de água. Água de fome e vontade. Uma faca grande e bem afiada faria o corte preciso. Com muita calma, penetraria nela o garfo de enormes dentes e a deitaria languidamente no prato. Ao seu lado, para breve companhia, um pouco de arroz, farofa e maionese. Pronto, perfeito. Agora, a boca aberta já estaria à espera, assim como todas as glândulas e todos os dentes. Se houver sorte e dinheiro, 32 inteiros ou consertados. Mas, antes, outro corte. Menor, mais delicado, mais sensível. Enfim, o garfo, o pequeno, espetaria a sua pressa na carne. E a boca ávida, como em nenhum outro dia, engoliria tudo. Ao seu lado, em silêncio, a sua mulher fazia o mesmo. Ao lado dela, fazia o mesmo a sua filha. E o filho. Na outra ponta, o seu pai, mãe, e pai e mãe dela. Na casa vizinha, dava para ouvir o mesmo. E o mesmo, o mesmo. Alguém riu, todos riram. Alguém disse Feliz Natal, todos repetiram. Alguém estendeu um presente, todos estenderam. Alguém anunciou que ia dormir, dormiram. E o céu deste mundo brilhava, sem reluzir nenhuma estrela.

14.12.07

O PINTINHO



Eu estava na alfa e ia encarar a minha primeira prova. Era de leitura. Ninguém sabia qual história a gente ia ler, a surpresa fazia parte do teste. Também fazia parte a leitura ser para a diretora da escola, não para a nossa professora querida. Sabe-se lá de onde vem esses requintes de tortura, mas era assim. Lembro que estava todo mundo elétrico, a diretora tinha cabelos brancos em cachos de caracol em sua cabeça. Podia parecer um anjo, mas não era. Era uma mulher muito ocupada e muito séria. Para aumentar o requinte da nossa prova-tortura, ficávamos todos na sala, em nossas carteiras até sermos chamados pelo nome. Aí nos levantávamos e seguíamos a nossa professora querida por um corredor que lá pelos meus cinco anos achei enorme. Uma porta azul fechada então era aberta e lá estava: a diretora que de anjo só tinha os cabelos.
Lembro que atravessei o corredor comprido com a mesma ansiedade dos meus amigos. Entrei pela fronteira azul com a mesma expectativa assustada. Mas assim que vi os caracóis brancos, tentei me recompor. Olhei a diretora com desconfiança, sem deixar ela perceber que eu sabia que ela sabia que eu sabia muito bem que de nós duas ali, era eu, sentada na cadeirinha amarela, a única em desvantagem.

E foi quando tirei os olhos da diretora para olhar a prova.

E, por uma dessas mágicas que acontecem e transformam uma coisa em outra, a prova de repente não era mais uma prova: era um livro.

E a diretora sumiu com seus cabelos de caracol branco e com a sua tortura requintada para algum reino longe da porta azul.

Ali, ficou só a história. O Pintinho.

2.12.07

Esta menina

Estava outro dia reescrevendo uma passagem do romance. Eu apagava, escrevia, lia, apagava, tomava café, voltava, lia, escrevia, apagava, tomava banho, voltava, escrevia, escrevia, escrevia escrevia, deixava, via mail, via janela, via tv, voltava, lia, apagava, escrevia, escrevia, foi assim até à noite, quando deixei para ler no dia seguinte a última versão do que fiz. E fui rodopiar pela casa, arrumei almofadas, abri geladeira, fiz o jantar, e enquanto esperava meu marido, peguei assim como quem não quer nada um livro. Assim, distraidamente, peguei o livro que estava mais ao alcance da mão. Meus olhos viram depois dos dedos que eu havia pegado, Albúm de família, da Clarice. (Coincidência? Não fiz a pouco um post com ela?) E meus dedos abriram antes da mente perceber na página do conto A menor mulher do mundo (coincidência? não havia trabalhado há pouco este conto no curso de criação literária?).
Coincidência ou não, reli o conto, que eu acho simplesmente um dos melhores do mundo. Reli no impulso de quem havia pegado o livro meio sem querer, impulso distraído, que trouxe frescor inesperado à leitura de um conto que há anos sei de cor. O prazer que senti foi imenso. Sempre me comovo com este conto, mas desta vez não foi uma comoção, digamos, estética, como a que tive quando trabalhei o conto na aula, foi uma comoção além, e, ao mesmo tempo, aquém, que me re-lançou na cara a leitora-menina que fui e espero sempre ser. Me trouxe este gosto fantástico, que é o de ler um texto que agrade, divirta, comova, perturbe, ultrapasse, surpreenda, mobilize e, até mesmo, desagrade.
Sem dúvida, esta ligação afetiva-imaginária com a leitura me levou a escrever.
E fiquei pensando: será que é esta ligação que tenho -ao ler- que busco -ao escrever?
Será que é por isso que só me dou satisfeita com uma página quando, de certa forma, ela me perturba ou me comove, ou me surpreende?
(É uma questão pessoal, sabe, que produza esses efeitos em mim, quem escreve, sem pretensão nenhuma de escrever uma página "surpreendente", "comovente", "perturbadora" para outra pessoa, o leitor. Sim, que fique claro que a cabeça até pode voar, mas os pés estão no chão, os dedos estalam e a coluna dói).
Então:
Será que o escritor está sempre tentando resgatar, ou re-criar, ao escrever a sua história, a paixão que sente ao ler?
Como se sempre estivéssemos estendendo a mão para os grandes impactos com a leitura que tivemos, sempre buscando a fonte que despertou aquela sensação primeira: o amor pelos livros.
Neste ano, principalmente, uma coisa muito bela aconteceu: reencontrei a menina apaixonada por histórias que eu fui ao lembrar por acaso um episódio de quando me alfabetizei. Desde então, tenho sentido que escrevo com mais... ... paixão?
... com maior desligamento ou despreocupação da escrita como "profissão", e de todo o seu kit?
Talvez seja isso, não sei. Sei que agora uma brisa mais fresca corre por aqui... e nunca mais escrevi de outro jeito, a não ser de mãos dadas com esta menina.

19.11.07

Mistérios de Clarice

Um pouco de Clarice, para alegrar (sim, Clarice também é alegria), o dia.



"Então fomos visitar o ministro e a família. Eles são todos ótimos. Só que são de outra espécie absolutamente. A senhora é do tipo da boa senhora, de boa família, simples, boazinha. mas eu vivo me contendo para não abrir a boca porque tudo o que eu digo soa "original" e espanta. Quero explicar o "original". Esta senhora tem pavor de original. Fomos ver uma exposição em de modelos em Viena (sem grande graça) e ela dizia: esse modelo é original mas é bonito. Falando de uma senhora inglesa que fazia muito esporte: ela é original, não gosto. Original é um palavrão. E quando eu quero dizer que não posso abrir a boca para não ser "original", quero dizer que se digo: que dia bonito, isso soa original. Quando falo, aliás, eles acham muita graça, ficam espantados, riem. E também procuro não me revelar. Por exemplo, ela, que é simples realmente, me disse: aquela casa de chá defronte do hotel é mal frequentada. Isso me avisando depois de eu ter ido lá. A casa de chá é muito bonitinha, com gente honesta comendo doce. O que se chama "mal frequentada" é porque não é frequentada pelos diplomatas e finuras da sociedade bernense. Então eu fecho a boca para nao dizer que continuo a frequentar. Os outros são simpáticos também. Mas eu me encontro com eles nos pontos em que começo a mentir. O que não importa, afinal."

Carta de Clarice, na bela biografia Clarice, uma vida que se conta, de Nádia Battella Gotlib.


E o link de um vídeo de Clarice no you tube. Além da última entrevista dela, disponível lá também.

http://br.youtube.com/watch?v=MT9I4tNnFDc

14.11.07

+ um pouco ...

Eu não esqueço de um aluno de Letras que mal conseguia escrever um texto ("tive uma péssima formação", ele dizia) e falava com os olhos brilhando que queria fazer a faculdade de Filosofia. Na verdade, fazia Letras para poder, depois, fazer Filosofia. Quem olhava o texto dele, só via a disparidade, a impossibilidade. A filosofia é um território exigente no plano da linguagem, da leitura, da escrita, da elaboração do pensamento, de tanta coisa que ele, naquele instante, não possuía, e sabia que não possuía. Mas, se a gente olhasse um pouco mais, via também o inconformismo. Uma pessoa que não se conformava em desistir de um interesse maior porque não tinha o mínimo. O sonho pessoal contra o pesadelo real da educação brasileira.
E fazia Letras na esperança de diminuir as forças contrárias do pesadelo e aumentar as do sonho.
Ai.
Tomara.

8.11.07

Sem medo de ter cultura

Ok, a minha idéia aqui neste blog não é falar de nada muito pessoal, a não ser o que está dentro e ao redor da literatura, o que mais amo nesta vida, o texto, a escrita. Estou dizendo isso não porque vou romper minha idéia inicial agora, não, vou mantê-la sempre, mas porque senti a vontade de escrever algo mais pessoal, que não envolve necessariamente a literatura, mas envolve a cultura de forma geral...

São situações simples, mas que dizem muito sobre a relação das pessoas (algumas? a maioria?) com a cultura hoje:
  1. Uma vez, comentei algo sobre não gostar de pagode, axé e derivados incluindo essas músicas americanas em lata e fui chamada de... elitista!
  2. Um amigo quase saiu no tapa com o DJ da festa do seu casamento porque ele não queria axé, funk carioca e derivados na sua festa, caramba, e foi chamado de... elitista. (Depois, fiquei sabendo por outras pessoas que essa queda de braço com o DJ é comum e que geralmente é ele que ganha.)
  3. Uma aluna comentou com as amigas que estava lendo Machado de Assis na faculdade e foi chamada de... elitista!
  4. Outro aluno confessou que às vezes erra de propósito a concordância verbal/numeral para não ser chamado de... elitista!
  5. No salão, uma senhora recusou a Caras e pegou na sua bolsa o seu livro encapado (ela podia estar lendo best-seller ou Shakespeare, não importa, o que importa é que estava lendo) e foi chamada de... elitista!
  6. Ouvi pessoas comentando, no ônibus, sobre Chico Buarque (!) e Cartola (!) como se eles fizessem música só para... elitistas!
  7. Numa roda, alguém comentou que não gosta do Big Brother, e outra pessoa duvidou, achando que no fundo, todo mundo gosta, mas disfarça. Quando a pessoa confirmou que não gostava mesmo, com os motivos e tal foi chamada por todos de ... elitista!
  8. Enquanto isso, o número de pessoas que abandona os estudos para trabalhar em profissões elementares aumenta escandalosamente.
  9. Enquanto isso, as redações nas escolas e vestibulares da vida estão cada vez mais ilegíveis.
  10. Enquanto isso, o número de pessoas que sabe ler e interpretar um texto diminui a cada dia. Então, a cada dia, textos simples vão se tornando cada vez mais difíceis e complexos.
  11. Enquanto isso, eu e meu marido somos constantemente olhados, praticamente apontados, nas ruas deste Brasil, seja na zona norte ou sul, por formamos um casal interracial.
  12. Nunca vi - nesta vida, neste mundo- uma inversão tão cruel e tão cínica do significado de uma palavra.



E um dia ela se levantou, exausta de realidade.


24.10.07

3 X Artaud


Artaud subiu para o estrado e disse: O teatro e a peste. [...] Queria lembrar-nos que os dias de Peste trouxeram à luz um grande número de maravilhosas obras de arte e peças de teatro porque o homem, chicoteado pelo medo e pela morte, procurava a imortalidade, a evasão, tentava ultrapassar-se. Artaud largava de forma quase imperceptível o fio que seguíamos e começava, porém, a interpretar o papel de um homem a morrer de peste. Ninguém viu em que momento começou a fazê-lo. [...] os olhos dilatavam, enrijava os músculos, os dedos lutavam para conservar a flexibilidade. [...] Estava em plena tortura. Berrava. Delirava. {...] As pessoas começaram por ficar de respiração entrecortada. Depois desataram a rir. Toda a gente ria! Assobiava. Por fim, foram saindo uma a uma [...] a falar alto, a protestar. [...] Mas Artaud continuava, até o último suspiro. E lá ficou no chão. Depois, [...] veio direto a mim e [...] pediu-me para ir com ele a um café. [...] Ele ficara ferido, duramente atingido e desconcertado com as vaias. Espumava de cólera: Só querem ouvir falar de; querem ouvir uma conferência objetiva sobre o teatro e a peste, ao passo que eu quero oferecer-lhes a própria experiência, a própria peste, para ficarem aterrorizados e acordarem. Quero acordá-los. Não compreendem que estão mortos. A sua morte é total, como uma surdez, uma cegueira. Mostrei-lhes a agonia. A minha,sim, e a de todos que vivem.[...] Por vezes sinto que não escrevo, que descrevo os esforços de escrever, os esforços de nascer.
Para Artaud, morrer de peste não era mais terrível do que morrer de mediocridade, de espírito mercantil, da corrupção que nos rodeia. Queria que as pessoas tomassem consciência de que estavam a morrer. Metê-las à força num estado poético.
(grifos do original, de Anaïs Nin)

Anaïs Nin em fragmento extraído do livro Eu, Antonin Artaud, coletânea de textos de Artaud,p.18-20.
* * *
Todo verdadeiro sentimento é na verdade intraduzível. Expressá-lo é traí-lo. Mas traduzi-lo é dissimulá-lo. A expressão verdadeira oculta aquilo que manifesta. Opõe o espírito ao vazio real da natureza criando, por reação, uma espécie de plenitude no pensamento. Ou, se preferirem, em relação à manifestação-ilusão da natureza ela cria um vazio no pensamento. Todo sentimento poderoso provoca em nós a idéia do vazio. E a linguagem clara que impede esse vazio impede também que a poesia apareça no pensamento. É por isso que uma imagem, uma alegoria, uma figura que mascare o que gostaria de revelar tem mais significado para o espírito do que as clarezas proporcionadas pelas análises das palavras.
Assim, a verdadeira beleza nunca nos atinge diretamente. E é assim que um pôr-do-sol é belo por tudo aquilo que nos faz perder.

(Artaud, Antonin, O teatro e seu duplo,p.94.)
* * *
Quando recito um poema, não é para ser aplaudido, mas para sentir os corpos de homens e mulheres, eu disse os corpos, tremerem e agitarem em uníssono com o meu, girarem como se passa da obtusa contemplação do buda sentado, coxas instaladas e sexo gratuito, à alma, isto é, à materialização corporal e real de um ser integral de poesia. Quero que os poemas de François Villon, de Charles Baudelaire, de Edgar Poe ou de Gerárd de Nerval tornem-se verdadeiros e que a vida saia dos livros, das revistas, dos teatros ou das missas que, para captá-la, a retêm e a crucificam, e passe para o plano dessa imagem interna de corpos...

Carta de Antonin Artaud a Henri Parisot, mencionada por Cortázar em Morte de Antonin Artaud, Obras Críticas II, p.144.

10.10.07

Dostoiévski

Hoje entrei numa livraria e vi lá vários livros do mago russo em nova tradução, pelo professor Paulo Bezerra. Oba, boa desculpa para ler e reler o mestre dos subterrâneos e do humor triste. Perguntei ao livreiro se O adolescente havia sido traduzido também. Ele achava que não, mas prometeu se informar e me dizer depois. Fiquei por ali vagando entre as prateleiras me lembrando do meu primeiro encontro com Dostoiévski. Foi assim: eu tinha 16 ou 17 anos e era sócia da biblioteca Municipal de Niterói. Toda semana ou de 15 em 15 dias lá estava eu em busca de um novo livro. Gosto muito de lembrar dessa época, quando a minha relação com a literatura era simplesmente de fome. Eu não queria ler autor tal ou literatura do país tal ou da época tal. Meu Deus, eu só queria ler.
Então, entrando nas fileiras repletas de livros e poeira, fui vendo as lombadas aqui e ali até que me deparei com uma com o título O adolescente. Apenas isso. Apenas isso e eu tinha 16 ou 17 anos. Não conhecia o autor. Um nome esquisito, difícil à beça de falar. Peguei e levei para capa o livro de mais de 300 páginas acreditando que, pelo título, a história poderia ter quem sabe alguma coisa a ver comigo. Ingenuamente, comecei a ler. E talvez tenha sido ali entre aquelas páginas que uma parte de minha ingenuidade se foi. A narrativa, na primeira pessoa, é sobre um filho ilegítimo, criado entre estranhos. A sensação maior do personagem é que tudo em sua vida não lhe pertence, inclusive o seu nome. Lembro que simplesmente não conseguia parar de ler, acordava e dormia com o livro velho e empoeirado da biblioteca ao meu lado. No final, retardava a leitura para a última página demorar. Em nenhum momento pensei: quem é esse tal de Dostoiévski? Estava apaixonada pela história, pelo jeito da escrita, não pelo autor. Devolvi o livro no balcão da biblioteca triste de não poder deixá-lo em casa. Fiquei perdida sem saber qual seria o próximo que eu iria ler. O que eu poderia ler, depois daquilo? A bibliotecária deve ter percebido minha cara tonta e perguntou se eu queria alguma ajuda. Mostrei o livro que eu devolvia e ela me perguntou se eu tinha gostado. Fiquei assim muda sem saber o que dizer. Gostar não era bem a palavra, ou o verbo. Gostar a gente gosta de uma fruta, de um suco, de um garoto na escola. Eu tinha... amado? me apaixonado? Não sei. O livro tinha me deixado transtornada, comovida, deslumbrada, doída. Foi uma brutal experiência estética, sei hoje, talvez. Mas na época só sabia que tinha me enlouquecido. E talvez saber apenas isso seja realmente o bastante, mesmo hoje.
Eu e a bibliotecária acabamos nos entendendo. De um modo que não sei dizer qual foi, ela percebeu que eu havia "gostado" e então fez as devidas apresentações. Por sua boca fiquei sabendo que Dostoiévski era um grande escritor russo, do final do século XIX. E me mostrou outros livros dele. Não lembro exatamente porque, Deus queira que não seja pelo título, escolhi O idiota e sai da biblioteca repetindo o nome do autor com a sensação de que havia conhecido uma pessoa que me seria cara para sempre e com a frase da bibliotecária na cabeça: um grande escritor. Hoje, fico feliz em lembrar que antes de saber que Dostoiévski era um grande escritor para o mundo, nosso encontro às escuras já o havia tornado grande para mim.

4.10.07

Estranha ficção, fricção

Não deixa de ser instigante o fato de que meu livro tenha sido feito no vazio. E só por isso ele se fez. Quando comecei a escrever, estava cheia de informações reais sobre a história e os personagens. O "início-meio-fim" estabelecidos, embora o "como" não estivesse. Escrevi quase cem páginas que acabaram no lixo. Eu seguia os passos dos eventos como salva-vidas dispersos na imensidão do mar. Então, lembrei do meu processo com os contos. As histórias saiam do nada, uma imagem, uma idéia, um clima, uma atmosfera, uma pequena situação, uma frase que puxava outra. E, enquanto escrevia, a pergunta constante, e agora? e agora? E a história se fazia, da forma que necessitava se fazer. De certo modo, eu não tinha muito a ver com isso. Ia sendo levada, me deixando levar, seguindo as pistas que a própria escrita me dava, me ajeitando ao seu modo, decifrando a sua língua, confiando que de alguma forma iria chegar ao ponto final, embora nao soubesse muito bem como, e colaborando na medida do possível para que meus sustos, angústias e receios não atrapalhassem o caminho.

Lembrando disso, joguei as cem páginas no lixo e respirei fundo. Larguei as pesquisas e respirei fundo. Afoguei os salva-vidas no mar e respirei fundo. Esqueci que meus personagens foram pessoais reais e respirei fundo. Matei a idéia de que contava uma história "acontecida" e respirei fundo. Muito fundo. Destrui todas as certezas, todos os fatos estabelecidos e comecei. Fui escrevendo como se não houvesse nada a minha frente. O vazio. Foi preciso destruir toda a lógica consensual do que seria o enredo, foco narrativo, os personagens, blá blá blá e etc e tal para não ter nada nas mãos, a não ser a imaginação e a linguagem.

E agora? E agora? Comecei a me perguntar a cada página, a cada novo dia diante do PC.

Então, de alguma forma obscura, suspreendente para mim, as palavras vieram e o romance se fez.

Foi exatamente isso: no momento em que se tornou imprevisível, aconteceu.

29.9.07

meus escritores

Clarice, Cortazar, Calvino, Nelson, Becket, Kafka, Guimarães, Hilda, Mansfield, Caio, Faulkner, Dostoiéski, Tchekov, Ionesco, Artaud, Saroyan, Pessoa, Barros, Marques...

... Seguindo os passos de Cortazar: o que há em determinado texto que o torna especial para você?


Por quê Clarice, Cortazar, Calvino, Nelson, Becket, Kafka, Guimarães, Hilda, Mansfield, Caio, Faulkner, Dostoiévski, Tchekov, Ionesco, Artaud, Saroyan, Pessoa, Barros, Marques...?

13.9.07

A marquesa

Uma brincadeirinha sobre a célebre frase de Paul Valéry, dizendo que nunca escreveria um romance que tivesse a seguinte frase: "A marquesa saiu às cinco horas". Para ele, a frase era o exemplo perfeito de uma literatura de superfície, de pequenas observações, de interesse mediano, burguês. A brincadeira é uma junção com outra observação do surrealista André Breton sobre a descrição na narrativa. Ele cita ninguém mais ninguém menos do que
Dostoievski, em Crime e Castigo. "Os móveis, de madeira amarela, eram todos muito velhos. Um sofá com um grande espaldar virado, uma mesa de formato oval em frente ao sofá, um toucador e um espelho encostados num vão de parede entre duas janelas". Para Breton, a descrição é um recurso inútil e vazio, que nada expressa ou revela. Serve apenas para retratar um ambiente, como um quadro realista. Não constrói nenhuma relação do personagem com o espaço, nem com a trama desenvolvida.

E a brincadeira:

A marquesa saiu às cinco horas. Os móveis, de madeira amarela, eram muito velhos. A janela está fechada desde ontem. Havia um toucador e um espelho encostados, num vão de parede.

A marquesa saiu? Às cinco horas? Os móveis, de madeira amarela? Eram muito velhos. A janela está fechada? Desde ontem. Havia um toucador? E um espelho. Estão encostados num vão? Na parede.

A marquesa? Saiu?
Às cinco horas.
E os móveis?
Desde ontem.
A janela?
Fechada.
E um toucador e um espelho?
Encostados em vão na parede.

Marquesaaaaaaa !!
Saiu!
Ontem?
Pela janela.
Os móveis encostados em madeira amarela.
Às cinco horas fechadas, velhos em vão no espelho.
Desde muito.

21.8.07

porque sim

Ele disse que escrevia para salvar o mundo.
Ela disse que o mundo não tinha salvação e escrevia exclusivamente para salvar a si própria.
Ele aconselhou não contar com isso, que escrevesse apenas para continuar vivendo.
Ela respondeu que continuar é um motivo justo para se escrever, mas que para viver não, a vida exige muito mais do que apenas o continuar dos dias.
Ele não quis pensar sobre o assunto, preferiu escutar outra pessoa que disse que escrevia para se distrair da realidade.
Ela se espantou, nunca havia cogitado a hipótese: se distrair da realidade. Havia cogitado fugir, escapar, esquecer.
A outra pessoa continuou: escrevo para fazer graça.
Ele se coçou: como?
Graça com a vida, ora.
Ela riu, escrever é coisa séria.
Riram.
É coisa profunda, de assustar.
É pelos sustos que escrevo, disse outro homem. O mundo vai me assustando e eu vou escrevendo o que me assusta.
Só escrevo quando estou triste, outra mulher falou.
Eu, só quando estou feliz, ele disse.
Não sei escrever com um problema pendente, alguém comentou.
E uma mulher: Já eu penduro os problemas num canto da cabeça para escrever.
E outros:
Eu escrevo para entender. Eu escrevo porque não entendo. Eu escrevo para inventar.
Eu escrevo para destruir. Eu escrevo porque não sei. Eu escrevo porque não quero saber.
Eu escrevo porque gosto. Eu escrevo porque quero. Para esquecer. Para lembrar. Para me expressar. Para me exibir. Para me ocupar. É o que sei fazer. É o que acho que sei. Porque sofro. Porque amo. Porque sonho. Porque desejo. Porque odeio. Porque digo. Porque não admito. Porque não calo.
Eu escrevo, a moça disse, porque tenho a certeza que ninguém vai ler. Escrevo só para mim.
Eu não escrevo para ninguém, nem para mim mesmo, o moço completou.
Já eu simplesmente não escrevo, outro homem enfatizou. Não vou escrever num país com mais escritores que leitores.
E com mais escritores que bons livros, outra pessoa inferiu, provocando vaias e aplausos.
Eu escrevo por causa disso tudo, ele falou.
E eu escrevo apesar de tudo, ela retrucou.
Eu escrevo contra. Eu escrevo com.
Eu escrevo para. Ao encontro de. Em busca de. Eu escrevo por.
Eu escrevo por que.
Eu escrevo.

30.7.07

Um dia qualquer

Num dia frio de verão, ele sonhou em ler um livro, como se faz num dia frio de inverno. Colocou um casaco, a manta sobre as pernas e abriu as páginas, sem desconfiar que o sol iria sair das nuvens em breve, derreter de suor sua pele e cegar com claridade fulgurante seus olhos.
Num dia quente de inverno, ele sonhou em ir à praia de protetor solar e óculos escuros, como se faz num dia quente de verão. Não se preocupou em levar casaco ou guarda-chuva, sem imaginar que alguns minutos de sol era o que lhe restavam antes do vento arranhar com areia as lentes escuras e antes do mar derrubá-lo e engoli-lo com suas ondas gélidas.
Num dia qualquer, ele deixou as janelas fechadas e decidiu escrever, como se faz às vezes em um dia qualquer. No seu texto, os dias de verão eram sempre muito quentes e os dias de inverno muito frios. O sol queimava e o frio gelava perfeitamente onde se devia esfriar e esquentar.
Nesse dia, não havia dúvidas.
Nesse dia, ele não sonhou.
No dia seguinte, foi encontrado morto e sozinho, como acontece no dia seguinte a morte, quando se mora sozinho.
Disseram que morreu asfixiado pela fumaça dos milhares de papéis que queimou, provavelmente na tentativa de fazer uma fogueira.
Disseram que morreu tentando abrir as janelas que ele próprio havia trancado com cadeado e jogado as chaves fora.
Encontraram retalhos das páginas incendiadas com histórias nas quais as pessoas morriam congeladas no inverno e queimadas no verão.
Leram as frases sobreviventes, com imensa piedade.
Tão jovem, alguém disse.
Em seguida, foram cuidar do enterro, que não havia dúvidas de que aquele homem estava mesmo morto.

5.6.07

O martelo de Cortázar

"Esse escritor (o rebelde) parece ver no literato vocacional o homem que, de etapa em etapa, de escola em escola, vem aperfeiçoando um martelo desde o fundo dos séculos, polindo-o, melhorando sua forma, mudando detalhes, adorando-o como sua obra-prima e a culminação de seu esforço, mas sem o sentimento essencial de que todo esse trabalho deve finalmente levá-lo a empunhar o martelo e começar a martelar. Esse escritor segura o martelo tal como lhe foi dado, sem olhar para ele ou no máximo estudando-o até aprender a manuseá-lo direito; mas toda a sua atenção já está concentrada em outra coisa, no prego, naquilo que motiva o martelo e o justifica. E, desde que o século começou, muitas vezes esmagou os dedos por não olhar o martelo; mas não se importa com isso, porque faz parte do jogo, e depois ainda se bate melhor. Com vontade e eficácia mais acirradas. [...] se quisermos saber seu motivo para empunhar o mesmo martelo tradicional e se lançar à construção da sua cidade do sol, ele nos responderá descaradamente que em primeiro lugar é preferível lançar mão de uma ferramenta pronta antes que forjar um utensílio novo e, depois, que essa ferramenta continua sendo a mais eficiente para bater num prego, se realmente for usada para isso; e que, de mais a mais, ela é a mais cômoda."

2.6.07

A PEQUENA MORTE_ O conto

Uma aluna me falou do espanto (ainda, o espanto) que sentiu ao ler o conto que dá título ao livro, A Pequena morte e outras naturezas. Ouvi as impressões que ela teve na leitura com uma estranha sensação. Imediatamente, me transportei para a época em que escrevia o conto. Me vi diante do computador, escrevendo. Me vi digitando as frases hoje tão conhecidas para mim e que na época me vieram aos pulos. Me vi assustada com o que escrevia e com o que sentia ao escrever.Lembrei como este conto mexeu comigo. Eu tinha esquecido disso. Este conto me virou do avesso, me tirou peles, cascas, revirou feridas. Depois dele, eu estava diferente. Eu o reescrevi por quatro anos, entre indas e vindas, pausas e retornos. Com ele, experimentei tantas coisas, sobre mim mesma e sobre a escrita. Como pude esquecer? Não lembrar é como se eu tivesse me tornado outra escritora. E eu sei, como sei, que - dentro do pouco tempo livre e da louca rotina de compromissos urgentes sem a menor urgência - continuo essa pessoa que mexe com as palavras e é mexida por elas; que passa pela escrita como uma experiência; que atravessa a história e chega no outro lado, modificada; que vibra, como depois do sexo.

Para quem não conhece, deixo aqui uma palhinha da Pequena Morte, com saudades, muitas saudades, desta moça que o escreveu.


A PEQUENA MORTE

Ela apenas sabia : No início, era uma menina.
Uma menina que foi crescendo com uma angústia das grandes.
Quando cresceu para sempre, percebeu que não tinha tamanho. Não tinha limites para o que sentia. Seu coração arrebatava-se com a vida. Espantava-se com tanto. Tinha fome, de tudo, por tudo. Olhava o mundo com os olhos arregalados. Se pudesse, morderia as carnes, possuiria as matérias. Mas, geralmente, apenas passava o olhar sobre todas as coisas, consumindo-se com o que não podia consumir.
Pensou na menina de tranças que fora.
Lembrou que quando pequena tinha uma brincadeira predileta : caçar formigas.
Enquanto mastigava o chiclete ia esmagando as formiguinhas. Fazia isso sem pensar, quase sem saber que fazia. Quando descobriu que matava e ainda, assim, tão distraída do próprio crime, rodopiou até não agüentar ver tudo tão torto. E caiu aos pés do formigueiro.
Deitada, sentiu o movimento das bichinhas sobre a terra. Próximas de suas pernas, de seu rosto. Teve medo. Mas o seu coraçãozinho apertava-se era de culpa. Resolveu não se mexer. Percebeu que o aperto no peito era mais uma sensação do que uma certeza. Achou que sentiria melhor a culpa se a sentisse na carne. Estava decidida a enterrar a cabeça na terra, a entregar o seu corpo às formigas. Então, muito lentamente, abriu os braços, para receber o castigo. Também apertou os olhos até onde pôde. Queria sentir muita dor.
Ao chegar em casa, correu para a cama, onde ardeu de febre, de desvarios.
Doíam-lhe as picadas, a culpa.
Depois, foi com uma agonia mortal que se levantou e, em passos muito lentos e
desequilibrados, como ainda em delírio, se dirigiu, tonta, tonta, para o quintal. Certa de que não havia outro lugar para ir.
No início, sentia pena das formigas mortas.
Mas logo afligia-se com as vivas.
O prazer, ou melhor, o alívio, era maior do que a pena.
Melhor do que brincar de boneca era brincar de formiga.
Ou então, de galinha.
Não, não matava galinhas. Quem fazia isso era a empregada Jacira. Ela apenas as via morrer. Precisava vê-las morrer.
Quando ouvia que teriam frango para o almoço, corria para o quintal atrás de Jacira.
Primeiro, só as olhava.
Achava-as lindas assim tão inocentes do seu destino.
Depois, observava cada uma, tentando adivinhar qual delas seria a vítima.
Então escolhia a de cara mais espantada.
E vinha Jacira sem erro na galinha escolhida.
Era sempre assim.
Jacira insistia para que ela voltasse para casa, mas ela teimava em assistir tudo até o final. Gostava de ver o bicho lutando. Também gostava de vê-lo perder as forças. Mas, principalmente, o que mais gostava era quando ele se entregava à morte. E o seu olhar era tranqüilo e certo. Ela esperava até ver toda a agonia terminar no último suspiro.
Terminava também a sua agonia. Era o alívio.
No almoço, era com curiosidade e prazer que mastigava a carne da vítima. Procurava o gosto da morte entre os temperos. Cultivava em segredo uma mania : sempre fechava muito bem os olhos antes de engolir. E nunca comia um pedaço só. Também fazia questão da carne mal passada. A sua mãe sorria e elogiava o seu apetite. Ela também sorria. E olhava os adultos. Perguntava-se se eles se sentiam assim tão febris e felizes como ela. Mas eles comiam de um jeito tão distraído de matar formigas que ela percebeu que era inútil perguntar. Eles não sabiam.
Não sabiam o que ela sabia. Ela, que sentia uma parte quente do mundo dentro de si, intuía algum mistério que ainda não tinha nome em seu vocabulário. Mas era bom, muito bom.
Lembrou de um outro episódio : Estava deitada na grama, feliz, entre as formigas. Abraçava o chão, de barriga para o centro do mundo. Respirava a terra, de costas para o céu. Foi então que caiu bem na sua frente, a alguns centímetros da sua cabeça, um passarinho ferido, quase morto. Um menino veio correndo. Ele parou ao seu lado e inclinou-se atento sobre o bichinho.
Ela viu o estilingue em suas mãos.
O que sentiu, nem depois, com mais idade e palavras, pôde descrever.
Era o terror. O encanto.
Aproximou-se do menino. Esperaram juntos, de cabeças unidas, a última respiração do passarinho.
Quando o bichinho morreu, ela suspirou forte demais para uma menina.
Ele então a olhou pela primeira vez. Um olhar para sempre.
Mas logo inclinou-se, pegando o passarinho. E carregou-o com tanto cuidado e delicadeza que ela, hipnotizada por esse gesto, não conteve a sua dúvida.
- Foi você, não foi ?
Mas ele não disse nada.
- Por quê ? – ela insistiu.
E esperou a resposta que poderia salvá-la para sempre. Mas ele não lhe deu atenção, já estava longe.
Ela olhou o pequeno sangue na grama.
Ainda o viu antes de descer a ladeira. O seu primeiro amor.
Correu e alcançou-o mais adiante.
Lá estava ele, com uma pedra na mão, cavando um buraco na terra.
Ela aproximou-se, tímida.
- Posso ajudar ?
Ele deu de ombros.
- Pode.
Ela ajudou, maravilhada. Colheu flores para o velório, lembrou de uma oração para o enterro. Cantarolou baixinho, enquanto o observava. No meio da cerimônia, olharam-se, numa espécie de êxtase.
Ele tinha o jeito dos que sabiam.
Levou-o ao seu quintal para verem juntos Jacira com as galinhas.
Ele, como ela, adivinhou qual delas seria a vítima.
Ele, como ela, mastigava muito antes de engolir.
Ele, como ela, também se divertia com as formigas.
Estavam unidos para sempre.
Mas, um dia, se separaram. Foi no início da adolescência, quando a família o levou para longe. Ela se despediu, em prantos. Dentro do carro, ele a viu desaparecer no vento e na poeira da estrada. Pela primeira vez, tiveram medo de permanecerem sempre famintos. Eram crianças, mas já percebiam o que os mantinham vivos. Ele corroeu-se todo por dentro. Ainda não tinha aprendido a chorar.

A chorar ela aprendeu logo. Foi crescendo rápido entre as lágrimas e a raiva. Não tinha diversão que aplacasse a sua fúria. Não tinha pessoa que a fizesse esquecer. Estava sozinha.

23.5.07

Sobre escrever

É que o tempo espanta. Abrir a página e a última frase ter sido escrita há tanto tempo... dói como uma ausência perdida... ou sei lá, dói e ponto. dói e pronto.

É que a vida exige. A vida exige. exige.

Às vezes, também é preciso exigir um pouco.

É que o tempo espanta. Abrir a página e me sentir tão dentro do mundo em meus dedos. Como se as horas do lado de fora valessem por poucas coisas. Coisas seguradas à força, a forcéps, a garras e dentes.

Minhas âncoras.

É que a vida existe. A vida existe. existe.

Às vezes também é preciso existir um pouco.


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Pomo (De Mínima lírica)
Da vida só têm substância
a casca e o caroço.
No meio só tem amido,
embromações do carbono. Porém todo o gosto reside
nessa carne intermediária,
sem valor alimentício, sem realidade, sem nada.
É nela que os dentes encontram
o que os mantém afiados;
com ela é que a língua elabora
a doce palavra.

Sonetilho de verão
Traído pelas palavras.
O mundo não tem conserto.
Meu coração se agonia.
Minha alma se escalavra.
Meu corpo não liga não.
A idéia resiste ao verso,
o verso recusa a rima,
a rima afronta a razão
e a razão desatina.
Desejo manda lembranças.
O poema não deu certo.
A vida não deu em nada.
Não há deus. Não há esperança.
Amanhã deve dar praia.
(Paulo Henriques Britto)

25.4.07

CLARICE

É aparentemente paradoxal, mas às vezes tenho a certeza de que o que atrapalha a escrever é ter de usar palavras. É incômodo. É como se eu quisesse uma comunicação mais direta, uma compreensão muda como acontece às vezes entre pessoas. Se eu pudesse escrever por intermédio desenhar na madeira ou de alisar uma cabeça de menino ou de passear pelo campo, jamais teria entrado pelo caminho da palavra. Faria o que tanta gente que não escreve faz, e exatamente com a mesma alegria e o mesmo tormento de quem escreve e com as mesmas profundas decepções inconsoláveis: viveria, não usaria palavras. O que pode vir a ser a minha solução. E se for, bem vinda.

Sou incapaz de me sentar diante da máquina e de ir desenvolvendo um esquema pré-estabelecido, eu simplesmente escrevo o que vem. É assim: eu tomo notas de frases que me vêm, vejo que elas se ligam umas com as outras e já começo a escrever o livro. Não escrevo desta minha maneira pra ser de vanguarda, pra romper com os padrões literários, nada disso. Por exemplo: eu já fui hermética e hoje acho que não sou mais, a coisa vai-se espairecendo sem premeditação. Quanto ao adjetivo qualitativo, só os outros é que podem dar, eu não posso dar.