27.12.06

RESENHAS - parte 1

Percebi que nunca fiz um posto com resenhas e matérias do meu livro A pequena morte e outras naturezas. Como o romance sairá em 2007, vale a pena dar uma refrescada nessas coisas... Ainda vou aprender a manusear melhor o blog e deixar num link definitivo. Até lá...



Naturezas vigorosas
Os contos de "A pequena morte e outras naturezas", da jovem escritora Claudia Lage, são histórias longas de múltiplos feitios, com enredos extremamente diferençados, tratando da vida como um percurso de situações surpreendentes. Reunidas, as treze narrativas do livro compõem todo um painel pontilhado de possibilidades da existência. Em destaque, as relações afetivas, como destino essencial para as personagens. Por tramas imaginosas e originais, sempre com desfechos extraordinários, os contos tratam da descoberta do amor, da perplexidade no desencontro, da dor da perda e da saudade, da rotina na existência sem sentido, do desejo e do sabor da morte. No encaminhamento de suas histórias, a escritora lança mão das mais diversas técnicas narrativas, desde o relato de memória até o monólogo interior. Claudia Lage usa com habilidade tanto a narrativa na terceira pessoa, como na primeira, sendo vigorosos e fluentes os instantes de diálogos. Em cada um de seus contos, estão evidentes o domínio da linguagem e a adequada opção estilística. Sem dúvida, com "A pequena morte e outras naturezas", a escritora estreante firma seu talento, prenunciando uma boa presença na literatura brasileira. --
por José Arrabal (Site Capitu- literatura, Submarino)

As nossas pequenas mortes (Jornal do Comércio, Recife)

Nesses tempos em que você passa por uma livraria e dá de cara com obras de novos autores com 800 páginas, mais 300 de prefácio e 200 de introdução, encontrar livros de estreantes com simplórias 222 páginas é um achado. Adicione isso a epígrafes de gente como Clarice Lispector e Hilda Hilst, recomendação de Antônio Torres e além do mais textos emocionantes e precisos, parece até invenção. Mas é assim com essa boa surpresa que Cláudia Lage lança seu primeiro trabalho, A Pequena Morte e Outras Naturezas (Editora Record, R$ 20,00).
“Em um País onde a leitura é mínima, o conto pode despertar o interesse das pessoas”, afirma a autora. As estórias de Cláudia, graduada em letras pela Universidade Federal Fluminense, são curtas, porém construídas com grande densidade psicológica, valorizando as emoções.
Entre as suas influências, ela admite as de grandes nomes, como Clarice Lispector e Manoel de Barros – todos citados nas epígrafes da obra. Além desses dois, é possível sentir um certo ar de Caio Fernando Abreu e Rubem Fonseca, aqui e ali. Dois autores, diga-se de passagem, que parecem permear o trabalho de muitos estreantes atualmente no Brasil.
No futuro, a autora pretende entrar no terreno do romance, mesmo admitindo que é admiradora da linguagem curta, quase em pílulas, que os contos proporcionam. “Todo mundo fica me dizendo que conto é difícil, que não vende. Não sei, acho que gosto de uma história curta, de uma narrativa essencial que se resolva em pouco tempo”.



A Pequena Morte e Outras Naturezas
CLAUDIA LAGE
Treze contos da autor estreante Claudia Lage. Entretanto, Claudia apresenta histórias fortes, apresentadas com estilo apurado, livro segurança na ação e expressivo domínio da linguagem. São narrativas longas que, sem soluções fáceis, tratam das múltiplas possibilidades dos sentimentos humanos escritor e do sentido autor da vida. Sem dúvida, claudia lage revela a escritora como talentosa presença na literatura brasileira.

12.10.06

O LABIRINTO DA ESTANTE
(Crônica 1)
Claudia Lage


Estou em abstinência. Há trinta dias que não abro um livro, que não ponho uma única palavra nos olhos. Isso não é nada, pra muita gente. Mas, pra mim, que abro livros buscando afagos e atritos na pele, na imaginação, nos doze sentidos, é muito. Para mim, que durmo melhor com a palavra escrita do que com a dita, que não vejo imagem ou situação que eu não rumine e sofra em palavras e em silêncios, é um tempo impossível.
Tudo começou de um modo brusco, como sempre começam as surpresas. O inesperado é fogo. Fica a espreita como quem não quer nada e depois dá o bote, sem deixar brecha nem tempo pra gente se defender.
Eu estava num sarau literário. Todo mundo lia o texto de todo mundo entre chopes, risadas, petiscos, elogios ao vento, acanhamentos sinceros e cegas vaidades, quando escutei na voz de alguém um texto que me chamou atenção, não por que fosse bom ou ruim, mas porque me despertava uma sensação estranha, uma dor aguda nos dedos, uma aflição de pegar canetas e riscar paredes. Perguntei de quem era o texto e todos riram, tá brincando, tá de porre, tá de onda. Tô nada! Então, o inesperado baixou sem dó nem piedade: é teu, ora. Meu! Mas como eu não reconheci meu próprio texto?
Entendam. Mesmo sabendo que eu não via o texto faz tempo, que alguém tinha ele na gaveta e resolveu sei lá porque ler sem me avisar, mesmo assim: se eu não reconheci meu próprio texto, ele poderia ter sido escrito por qualquer pessoa.
E pior: ele nem me soou como vagamente conhecido, pior, ele apenas me despertou uma sensação estranha, como quem encontra um filho sem saber que é seu e sente um sentimento fundo, sem identificação. Vontade de ao mesmo tempo sorrir e de virar as costas.
Desesperei.
Peguei com tremor o texto maldito, o filho bastardo, e fuxiquei, farejei, virei do verso e do avesso. E vi: estavam ali as sombras de todos os escritores que me marcaram, numa miscigenação estranhíssima. Um ser amorfo que era tudo e nada, sem a marca de seu criador: eu. E eu? Procurei em cada frase. E eu? Não. Eu não estava ali.
Já dizem por aí que ando roendo os dedos, cuspindo unhas, fechando bares, chutando latas, mordendo asfalto, jogando teclados pela janela e assassinando PCs. Mentira. Tudo mentira. Apenas entrei de jejum de livros e ando arrastando os chinelos pela casa, olhando com espanto as estantes, ruminando um silêncio de leitura.
Sempre achei que ler me ajudaria a escrever. Li de tudo, engolindo estilos, mastigando imagens, saboreando frases, despudoradamente. E do que me serviu toda essa dedicação de entranhas? Para me perder num labirinto de linguagens e estilos? Para escrever um texto sem dono, sem voz própria, sem assinatura, sem eu?
Que exagero! riu minha amiga-que-não-é-escritora, substituindo a minha caneca king zise de café por uma xícara single de chá de camomila. Sério. Eu lia, crente-crente que me alimentava: absorvia sensibilidades, engolia estéticas. Não! Elas que me absorveram, elas que me engoliram, entende? As referências me abduziram! Minha amiga-que-não-é-escritora fez seu diagnóstico: muito simples: crise criativa. E, antes de sair: você só precisa digerir tudo isso. Minha amiga-que-não-é-escritora é nutricionista. De novo a sós com a estante, percebi que minha crise criativa era mesmo caso de má digestão. Estava com leituras do dedão do pé ao cocuruto da cabeça. Não havia um único espaço vazio, para que algo realmente meu pudesse se criar. Enjôo. Muito enjôo.
Vomitei. É uma metáfora, por favor. Vomitei palavras, muitas. Num jorro incessante. Escrevi de tudo, posso dizer que todos os escritores passaram pela minha mão. Me senti um médium que incorpora ao mesmo tempo em que finge incorporar. Finge e nunca foi tão verdadeiro. Será que é isso? A consciência de estar fazendo algo já feito, que nos faz sentir como se não estivéssemos realmente fazendo aquilo, como algo nosso, mas apenas imitando aquilo que já se faz, ao mesmo tempo em que lá no íntimo sentimos que da imitação surge alguma coisa genuína, que só quem faz de verdade pode fazer? E a sensação também, de que essa coisa genuína, pessoal, só surge porque se conheceu outras, para então conscientemente se destacar delas, e, enfim, ser?
No meio do labirinto de palavras, escrevi, de repente, estou aqui! Nunca senti, como nesse instante, que colocava no papel uma coisa tão minha.
Foi preciso voltar bravamente à estante e aos livros para encontrar num deles a confidência de um autor lido em todo o mundo, há dois séculos: a busca da própria voz é a angústia e a delícia de todo bom escritor.
O jejum estava terminado.

Cristal de Clarice - A palavra

Le miracle é um octógono de cristal que se pode girar lentamente na palma da mão. Ele está na mão, mas é de se olhar. Pode-se vê-lo de todos os lados, bem devagar, e de cada lado é o octógono de cristal. Até que de repente – arriscando o corpo e já toda pálida de sentido – a pessoa entende: na própria mão aberta não está um octógono mas le miracle. A partir desse instante não se vê mais nada: tem-se.
Para passar de uma palavra física ao seu significado, antes destrói-se-á em estilhaços, assim como o fogo de artifício é um objeto opaco até ser, no seu destino, um fulgor no ar e a própria morte. Na passagem de simples corpo a sentido de amor, o zangão tem o mesmo atingimento supremo: ele morre.

Clarice Lispector, A descoberta do mundo

27.9.06

Sabe? Sabe? - Parte 2

Sabe o que é ver passar os dias, meses, sem tempo de colocar as mãos os dedos nas páginas frases palavras que até então eram suas - íntimas como é íntimo o corpo de quem se ama?

Sabe quando você se afasta tanto do seu texto, tanto, tanto, que - depois de meses sem olhar para ele - quando, enfim se depara com as páginas escritas, não as reconhece mais?

Sabe o que é procurar no texto - como quem procura no rosto de um antigo amante- o rastro do que um dia te pertenceu? os traços que se reconhecia pelo tato? o percurso que se fazia de olhos fechados?

E sabe o que é imprimir o seu texto - quase trezentas páginas- não para revisá-las ou para lê-las de novo, mas apenas e exclusivamente para abraçá-las? Sabe o que é a necessidade de confirmar- depois de tanta ausência - de que elas existem realmente e não são apenas uma imagem em seu computador?

Sabe o que é, enfim, ler o que se escreveu durante quatro anos vendo, na sua frente, quatro anos se passarem, enquanto, no papel, nada mais há além do que está escrito? Nada mais há além de uma história que não é a sua?

Sabe o que é guardar o livro impresso na estante com o espanto inevitável que tudo aquilo não te pertence mais? E, ao mesmo, tempo, sabe o que é ter a certeza, quase como um segredo, de que aquelas quase trezentas páginas nao saíram de outro lugar a nao ser de você mesmo?

E sabe o que é saber isso, não por uma constatação racional, mas por um vazio incrível no corpo? uma neblina qualquer na alma? um soco qualquer no estômago? uma alegria qualquer por outras vidas (as escritas)? uma preguiça qualquer nos dedos? uma angústia qualquer de noite de dia? uma vontade qualquer de escrever qualquer coisa? uma saudade qualquer de papel e caneta? um deserto absurdo de sentidos e palavras? uma urgência única de pertencer de novo?
Sabe? sabe? sabe?

5.7.06

Sabe? - parte I

Sabe quando você acorda, pula da cama feliz porque tem o dia inteiro pela frente para escrever? E sabe quando você acorda, pula da cama feliz porque tem o dia inteiro pela frente para escrever e no meio do café o telefone toca com um trabalho urgente para ser entregue até o meio-dia? E sabe quando você faz o trabalho urgente até o meio-dia e fica de novo feliz e saltitante porque afinal de contas ainda tem a tarde e a noite inteira pela frente para escrever e escrever? E sabe quando você abre o arquivo do word e começa a ler as palavras e a se envolver com aquilo e tal e aí se lembra que é o último dia para pagar aquela conta no caixa eletrônico e você pensa que é melhor pagar logo antes de esquecer de novo e depois ter que enfrentar fila quilométrica de banco? E sabe quando você olha a frase que estava escrevendo sem lembrar mais porque estava escrevendo daquele jeito e se entristece um pouco porque parecia uma boa frase afinal e a idéia na tua cabeça prometia mas agora não promete mais? Sabe quando você fecha o arquivo do word jurando que não vai demorar a abrir, que vai ser rapidinho, uma saidinha e pronto? E sabe quando você desliga o computador com a mesma sensação que se despede um amigo que você não sabe mas intúi que vai ficar um tempão sem ver? E sabe quando de repente no meio da rua entre um pensamento qualquer e outro vem a idéia daquela frase promissora que tinha se perdido antes? E sabe como é ter a idéia de novo no meio da rua e nenhum papel nem caneta para anotar? Sabe o que é ficar correndo de esquina em esquina falando sozinha repetindo a tal frase atrás de papelaria, papel, guardanapo serve, caneta bic, de camelô, qualquer uma desde que escreva? Sabe o que é ficar em casa com bloqueio criativo dias, horas, olhando o teto, as paredes, tomando café, horas, horas, sem conseguir escrever uma frase sequer, e, depois, basta colocar os pés na rua para ser fulminada por nada mais nada menos do que a santa inspiração? Sabe o que é ter uma frase atrás da outra passando pela tua cabeça ao mesmo tempo em que você pensa, que ótimo, como não pensei nisso antes, e ao mesmo tempo também em que sabe que se não anotar logo daqui a pouco vai esquecer? Sabe o que é enfim achar uma papelaria-esperar pela sua vez- quase implorar para ser atendida-pedir papel, não tem, bloquinho serve, caneta, qual, a mais barata, ficar na fila do caixa, pagar, troco e então-enfim- sabe o que é escrever em pé andando e já sentindo todas aquelas frases e idéias desvanecendo como um lindo pôr-do-sol atrás do monte? Sabe o que é voltar para casa depois de ter ido no banco, almoçado pela rua mesmo, aproveitado para dar um pulo numa lojinha que tem umas frutas ótimas, ido rapidinho na costureira para pegar uma calça, ter dado uma passadinha no mercado porque se lembrou que o pão e o queijo tinham acabado, e também detergente, e sabão em pó, e Veja, e para o jantar um frango, e, enfim, ao chegar em casa, sabe o que é olhar o relógio e ver que são cinco horas da tarde e que o dia inteiro que tinha pela frente para escrever já estava ficando todo para trás?
E sabe o que é enfim e de novo ligar o computador e abrir o arquivo com a sensação vazia de que embora você quisesse muito não há nada nada nada a dizer?
E sabe o que é ver a noite chegar com o word aberto e as palavras inférteis, como um ventre seco?
Sabe o que é ligar a TV dizendo a si mesma que é só um descanso de 15 minutinhos mas acabar vendo o programa inteiro e o outro e o outro, com o laptop ligado no colo? Sabe o que é enfim desligar o computador, não a TV, sem saber o que fazer com o dia perdido?
Sabe o que é ir para a cozinha preparar o frango com o terrível alívio de que pelo menos o coitado - grelhado ou ensopado - vai sair?
Sabe? Sabe?Sabe?

21.6.06

falso ponto final

Mesmo falso, aí está. E o olhar volta para a primeira palavra, primeiro sopro, a primeira frase. Todo o contexto da vida que envolvia aquele momento. Tudo que estava por detrás das palavras. Tudo o que a palavra não diz, mas que, de certa forma, a alimenta. A alimentou. E como tudo mudou. Junto com o texto. Parece que a pessoa que escreveu aquele início não existe mais. Estranho ver esse deslocamento de uma coisa que saiu de você. É esquisito mesmo ver como o texto toma vida própria. Ele, simplesmente, te esquece.

Essa distância tem uma vantagem. Com o cordão umbilical arrancado à força e a tesouradas, o olhar para o texto muda totalmente. Ainda é o seu texto. Mas é como se você estivesse na sua casa, e, de repente, alguém liga dizendo que vai te visitar. Danou-se. Você enxerga a louça suja na pia, enxerga a marca quase imperceptível na parede, enxerga o taco solto, o pó nos móveis. Enxerga tudo, enfim, que já estava lá, mas o seu olhar acostumado passava batido. É muito bom quando isso acontece. O olhar do autor se torna estranho ao próprio texto. Os defeitos aparecem. E a essa altura não se tem mais pena de mudar, cortar, riscar. Na verdade, nunca tive esse dedo leve. Sempre peguei com mão pesada. Já joguei fora, deletei, reescrevi. Reescrever, então, merece um capítulo à parte. Reescrever parece a recompensa de tudo que foi escrito. Está tudo lá, agora é só diversão.
Dizer a mesma coisa de uma outra forma. Experimentar maneiras mais interessantes. Brincar com as palavras, a sonoridade, o ritmo. Sem pressa de seguir adiante. Passar um tempão bolirando um parágrafo, uma página. Delícia.

31.5.06

A criação para Scliar



Vinte e uma coisas que aprendi como escritor
Moacyr Scliar

APRENDI que escrever é basicamente contar histórias, e que os melhores livros de ficção que li eram aqueles que tinham uma história para contar.
APRENDI que o ato de escrever é uma seqüela do ato de ler. É preciso captar com os olhos as imagens das letras, guardá-las no reservatório que temos em nossa mente e utilizá-las para compor depois as nossas próprias palavras.
APRENDI que, quando se começa, plagiar não faz mal nenhum. Copiei descaradamente muitos escritores, Monteiro Lobato, Viriato Correa e outros. Não se incomodaram com isto. E copiar me fez muito bem.
APRENDI que, quando se começa a escrever, sempre se é autobiográfico, o que - de novo - não prejudica. Mas os escritores que ficam sempre na autobiografia, que só olham para o próprio umbigo, acabam se tornando chatos.
APRENDI que, para aprender a escrever, tinha de escrever. Não adiantava só ficar falando de como é bonito ( ... )
APRENDI que uma boa idéia pode ocorrer a qualquer momento: conversando com alguém, comendo, caminhando, lendo (e, segundo Agatha Christie, lavando pratos).
APRENDI que uma boa idéia é realmente boa quando não nos abandona, quando nos persegue sem cessar. O grande teste para uma idéia é tentar se livrar dela. Se veio para ficar, se resiste ao sono, ao cansaço, ao cotidiano, é porque merece atenção.
APRENDI que aeroportos e bares são grandes lugares para se escrever. O bar, por razões óbvias; o aeroporto, porque neles a vida como que está em suspenso. Nada como uma existência provisória para despertar a inspiração literária.
APRENDI que as costas do talão de cheque é um bom lugar para anotar idéias (é por isso que escritor tem de ganhar a grana suficiente para abrir uma conte bancária). O guardanapo do restaurante também serve, desde que seja de papel e não de pano. (...)
APRENDI que o computador é um grande avanço no trabalho de escrever, mas tem um único inconveniente: elimina os originais, os riscos, os borrões, e portanto a história do texto, a qual - como toda história - pode nos ensinar muito.
APRENDI que a mancha gráfica representada pelo texto impresso diz muito sobre este mesmo texto. As linhas não podem estar cheias de palavras; o espaço vazio é tão eloqüente quanto o espaço preenchido pela escrita. O texto precisa respirar, e quando respira, fica graficamente bonito. Um texto bonito é um texto bom.
APRENDI a rasgar e jogar fora. Quando um texto não é bom, ele não é bom - ponto. Por causa da auto-comiseração (é a nossa vida que está ali!) temos a tentação de preservá-lo, esperando que, de forma misteriosa, melhore por si. Ilusão. É preciso ter a coragem de se desfazer. A cesta de papel é uma grande amiga do escritor. (...)
APRENDI a não ter pressa de publicar. Já se ouviu falar de muitos escritores batendo aflitos, à porta de editores. O que é mais raro, muito mais raro, são os leitores batendo à porta do escritor.
APRENDI a não reler meus livros. Um livro tem existência autônoma, boa e má. Não precisa do olhar de quem o escreveu para sobreviver.
APRENDI que, para um escritor, um livro é como um filho, mas que é preciso diferenciar entre filhos e livros.
APRENDI que terminar um livro se acompanha de uma sensação de vazio, mas que o vazio também faz parte da vida de quem escreve.
APRENDI que há uma diferença entre literatura e vida literária, entre literatura e política literária. Escrever é um vício solitário.
APRENDI a diferenciar entre o verdadeiro crítico e o falso crítico. O falso crítico não está falando do que leu. Está falando dos seus próprios problemas.
APRENDI que, para um escritor, frio na barriga ou pêlos do braço arrepiados são um bom sinal: um livro vem vindo aí.

2.5.06

O PONTO FINAL

Sim, confesso, estou vivendo a crise do ponto final. Essa paisagem tortuosa e torturante, sedutora e irresistível, esse ponto-horizonte que persigo dia a dia, frase a frase, pelo qual me lanço a passos largos e miúdos, arfante e incansável, língua de fora, boca seca, esperançosa e desejante. A visão alucinada de teclar o . na última página e ver o espaço branco depois, de quem não tem mais nada a dizer.

Acostumada com contos, cujo ponto final é um horizonte próximo e provavél, entrei na escrita deste romance sem saber o que me esperava: dias, meses, anos convivendo com os personagens, seus caminhos, suas emoções, seus destinos. São vidas inconclusas que te acompanham até serem concluídas, e ninguém mais pode concluí-las, a não ser quem as inventou. No conto, as vidas se concentram intensas e os personagens vivem determinada experiência e pronto. No romance, os personagens envelhecem junto com o autor. Sei que não é assim com todos, mas está sendo assim comigo. É um fio que se estica até não poder mais, é dormir e acordar acompanhada dos personagens e de suas tramas. É muita gente para uma cama só! Os personagens são pessoas egoístas, eles invadem a sua vida e não querem saber. A invasão é, ao mesmo tempo, bem-vida e mal-vinda. Eles não sabem que existe uma coisa chamada limite. E parece que o escritor também não. Há dias que nos entendemos há mil maravilhas, outros dias a comunicação é cheia de ruídos, impossível. Há dias de silêncio, dias de euforia. Dias emotivos, dias de planejamento. São muitos dias até o último.
É uma delícia, confesso.
E também não é.
Porque parece que tem um mundo dentro de você querendo sair de uma vez só num jorro incessante intenso explosivo de efeito imediato e definitivo - como no conto -
mas este mundo sai pouco a pouco num processo pingado de gotas extensas e profundas - mas lentas e de efeito prolongado - como o romance
É como ter uma panela pressão na cabeça, que deixa o ar escapar num fio para não explodir. Ou como estar numa grande sala lotada de gente com uma única saída para todo mundo. Não adianta, tem que sair um de cada vez.
Até a última pessoa deixar o salão.
Até a última frase despontar no horizonte.
Até chegar a hora do ponto final.
Explico: não é o desejo de me livrar do trabalho, como se fosse um fardo. Não é isso. O processo é maravilhoso, escrever é minha alegria. Não é isso. É a necessidade de ver o mundo criado pronto, erguido, construído. No conto, este mundo se ergue rápido. Fica a estrutura pronta para ser retrabalhada nos detalhes. No romance, essa construção é uma grande obra. Por isso, quero o ponto final, para poder me afastar e ver de longe como é afinal este mundo que construí.
Enquanto isso, pelo menos aqui:
.

22.4.06

Hoje

Tudo inteiro
O todo completo
Como a palavra no verso
Como quando o sentido
Encontra a forma
Poesia e prosa
Você o verso
Eu a prosa

21.4.06

Vozes de Virgínia Woolf

Escrever este romance tem me exigido um tempo imenso, dilatado no próprio tempo, impossível para os compromissos diários, incompatível com a realidade. Um tempo implacável, que pede silêncio e solidão. Pensamentos obscuros, sentimentos intensos. O olhar parado sobre as coisas, esperando, esperando, esperando... o quê? De repente, sei. São as palavras e as imagens que chegam, precisas, como se estivessem se organizando no escuro antes de aparecer. Me arrepia tudo isso. Nunca senti esse deserto ao escrever. Um deserto povoado pelos personagens. Diariamente, eles vão se tornando cada vez mais vivos, mais fortes do que as pessoas. São quase quatro anos, afinal. É um tempo que nao reconheço nas páginas escritas. É como se existissem tempos diferentes entre a criação e a criatura.

Tudo que faz parte do imaginário - do processo criativo - se torna real.
O mais real. Dá para ver, tocar, cheirar, falar, responder, escutar.

Virgina Woolf ouvia vozes, agora entendo o porquê.

São fantasmas sem espíritos. Fantasmas da própria imaginação. A louca da casa, como diz Rosa Monteiro.

10.1.06

Cortázar

"A literatura é para mim uma atividade lúdica, lúdica naquele sentido que dou ao jogo, à brincadeira, mais aquilo que você conhece bem: uma atividade erótica, uma forma de amor."

3.1.06

Por uma literatura sem pudor

"O escritor contemporâneo, inspirado pelo escritor rebelde de Cortázar, impõe a si mesmo o desafio expressivo que percebe de sua época, de seu tempo, e que se torna a sua saga pessoal. Para ele, a aventura de escrever não se limita a colocar palavras no papel e contar bem e com alguma graça uma história (essa habilidade é o início e não o fim de sua vocação). Tampouco é utilizar as mesmas armas agressivas do escritor rebelde contra a tradição, já que as mesmas já se tornaram com o tempo, uso e repetição também uma espécie de tradição. Este escritor percebe que muito já foi feito, desfeito, dito, redito e sente no ato de escrever um tipo de saturação do próprio verbo. Há tantas formas possíveis de se contar uma história que ele se pergunta se todas já não foram feitas e refeitas exaustivamente nas últimas décadas.
Enquanto a tradição exalta a linguagem como a expressão mais bela e precisa do ser humano e de seus costumes, a vanguarda quer destruí-la em sua superfície de vidro e gelo, perfurar o seu conteúdo e alcançar o cerne que exprima além dos costumes humanos. Por sua vez, enquanto a vanguarda faz a escavação profunda do verbo, desconstruindo muitas vezes significantes e significados, na busca de criar uma linguagem original para cada situação a ser expressa, o escritor contemporâneo une a esta atitude, que ele não vê mais como um manifesto, mas como uma proposta artística, uma profunda desconfiança de que mesmo as mais diabólicas distorções, as mais radicais experiências dos modos verbais, que buscam exprimir a vida humana da forma mais vital e original possível, contêm dentro de suas explosões e brilho o elemento corrosivo da autodestruição. Dessa forma, além do desafio de, diante de todas as realizações literárias passadas e presentes, criar uma linguagem própria, uma escrita singular, o escritor contemporâneo ainda pode descobrir no meio do caminho que, mesmo cavando o túnel e abrindo espaço dentro da terra rígida, encontrará inevitavelmente dentro da própria linguagem limites comunicativos intransponíveis. [...] E, ao se assumir a limitação como parte integrante da própria natureza do verbo, esta se torna, por sua vez, expressiva. E alcança um grau de comunicação estabelecido não só por aquilo que se diz, mas, principalmente, pelo o que se deixou de dizer. [...] de alguma forma, o elemento corrosivo - a impossibilidade- incorpora-se ao processo comunicativo e este comete a mágica proeza de comunicar, não só o que é possível, mas também a própria incomunicabilidade." (p.42-43)


Este é um trecho da minha dissertação, chamada Por uma literatura sem pudor. É sobre o escritor contemporâneo diante das experiências estéticas da vanguarda e da tradição. A idéia é a de que escritor contemporâneo tem o desafio mais do que antropofágico de absorver/entender/deglutir/vomitar as propostas e se posicionar diante delas, mas o desafio maior de ultrapassá-las, em busca de sua voz original. Esse esforço de cavar o túnel da matéria já estabelecida na linguagem literária e tentar sair do padrão (da vanguarda ou da tradição) na busca de uma voz narrativa realmente própria e autêntica é o trabalho mais belo e desafiante do escritor contemporâneo.

Para isso, é necessário uma posição do escritor diante da história literária. Essa posição indica a formação de uma proposta artística. Um diálogo que se cria diante de tudo que já foi feito na linguagem.

No meu entender, é clara, de maneira geral, a forte continuidade de uma linha estética mais tradicional. Porém, há escritores que apontam em seus textos outros desejos expressivos, outras referências artísticas. Em seus trabalhos, percebe-se que essa inquietação não se satisfaz com os limites da representação realista, evidenciando a noção de que esta possui ferramentas expressivas para e de uma época específica que hoje não dão conta, nem poderiam mesmo dar, das necessidades e possibilidades das relações e vidas contemporâneas.

Se a tradição não dá mais conta do recado, com suas descrições e explicações, o desafio é entrar no caminho da experimentação da linguagem, o mais estimulante e criativo, sem se deixar seduzir demais por ele, a ponto dele se tornar o fim e não o início do caminho. Que seja o início da busca pela voz original do escritor, e não o objetivo principal, experimentar por experimentar. Que o objetivo principal do escritor seja encontrar a sua voz narrativa singular. O seu jeito único de ver e dizer o mundo.