26.10.08

Domingo de Clarice, com Clarice, por Clarice

"O processo de escrever é difícil?
Mas é como chamar de difícil
o modo extremamente caprichoso
e natural como uma flor é feita".



Clarice Lispector, Legião estrangeira.

13.10.08

Lendo Caio, sobrevida.



"Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas.

(...)

Deixa eu te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver nascer uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente.

(...)

Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende?"

Trechos de Para uma avenca partindo (O OVO APUNHALADO)


" Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome." (Trechos de Pequenas epifanias)



"e tudo que eu andava fazendo e sendo eu não queria que ele visse nem soubesse, mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo, por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era." (Além do Ponto, em Morangos Mofados)


"Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de "minha vida". Outros fragmentos, daquela "outra vida". De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos." (Trecho de Dois ou três almoços, uns silêncios)



5.10.08

Por uma alegria genuína

Sempre que volto às aulas de criação literária na Estação das Letras, tenho uma espécie de reencontro feliz com a literatura. Especialmente quando as turmas são compostas de pessoas que realmente gostam e se interessam pela escrita. E apenas ela. E só ela.


É de uma alegria quase infantil, o coração descoberto, ver, ouvir e falar com essas pessoas, de profissões tão diversas. Jornalistas, advogados, músicos, engenheiros, professores, psiquiatras, só para citar algumas, e também universitários, estudantes do ensino médio, gente de todas as idades e todos os tipos, que não querem necessariamente publicar um livro, não querem seguir carreira literária, não querem ganhar prêmios, ver os seus nomes impressos e nem tudo o mais que envolve os arredores literários. O que eles querem, então, afinal?


Eles querem escrever.


Sim, apenas isso. E olhe, não é pouco. Há muitos caminhos a serem descobertos a partir desse desejo. Vejo a alegria genuína neles ao descobrirem. Sinto a alegria genuína de estimular e acompanhar essas descobertas. Quando encontro pessoas assim, turmas assim, é uma festa. Uma verdadeira celebração da escrita. Sei que nem todas as turmas são desse jeito. Realmente, é deprimente quando vemos pessoas mais interessadas em afirmar o ego por meio da escrita do que em escrever, mais concentradas em atiçar vaidades e derrubar conquistas alheias do que mergulhar no processo da escrita, que é único, pessoal, intenso e extremamente vulnerável.


Em 2003, fez dez anos que escrevi o conto que marcou, para mim, o início de um caminho mais pessoal na escrita. Escrevo desde pequena, mas a partir deste conto, A hora do galo, comecei a ter mais consciência da linguagem, da textura da escrita, do ritmo, do que é buscar uma voz singular. Em 1996, este conto foi premiado em um concurso da RioArte. De 1993 a 1996, escrevi outros contos, tentando encontrar a minha voz, tentando escrever e apenas isso. Em 1996, questões pessoais, a falta de tempo, a incerteza em assumir a escrita de um livro, a doação do tempo necessário da vida para isso (não há ilusões: se você não é rico ou algo parecido, o tempo para escrever um livro não existe, ele precisa ser cavado no cotidiano. Ele precisa ser retirado de algum lugar), e tantas outras dúvidas me afastaram da escrita. Estava me formando em Letras e em Teatro, e dois futuros incertos me pesavam. Um amigo então me falou do concurso, e nem pensei em participar. Me inscrevi no último dia, com o pensamento místico de que o resultado daquele concurso seria um sinal para mim. Apenas isso, um sinal. Eu não estava pensando em "vitória", em nada disso. Naquele momento de escolhas e definições, eu apenas precisava desesperadamente saber se o meu amor pela literatura era de alguma forma correspondido. Se não era platônico, com tinham sido outros amores. Como a música, como até o teatro parecia ser. Então, quando saiu o resultado e o meu conto foi premiado, foi muito mais do que qualquer vitória, mais do que ter o sentimento de que ali havia um caminho, foi como ouvir, num sussurro, "eu também". Podia ser um amor bandido, esquisito, incerto, repleto de inseguranças e expectativas, mas ele existia. E, às vezes, só saber que o amor existe já basta.


Claro que se o conto não tivesse sido premiado, eu continuaria a escrever, e cedo ou tarde viriam outros sinais para as minhas dúvidas e angústias. Mas era como se eu tivesse forçado o destino... Se eu contar até dez e uma mulher grávida virar a esquina... se hoje fizer sol... se o telefone tocar daqui a pouco... se... se... por acaso ou por sorte, aconteceu.

De 1996 a 1998, escrevi e reescrevi os contos pensando em um possível livro. Em 2000, o livro foi publicado. E de lá até hoje, depois de muitas lágrimas, suor e cerveja, a escrita está cada vez mais frequente em meus dias, ganhando pouco a pouco mais espaço e tempo, mais tranquilidade e prazer. E nesse tempo todo, desde que escrevi sem a menor expectativa de entrar no "mercado", anos atrás, até agora que escrevo com a consciência dele, não há a menor dúvida que é a escrita que continua movendo tudo. É a escrita. E só ela. Por isso, a alegria genuína ao encontrar pessoas que escrevem porque escrevem.

A ironia de tudo isso é que, com ilustres exceções, encontro essa alegria genuína com a literatura mais em pessoas que não tem pretensões literárias, não se dizem escritores e não publicam livros. Como eu disse, pessoas das mais diversas profissões. Não vejo essa alegria quando vou a um congresso, não vejo em escritores falando de seus livros e seus processos de criação. Novamente, com ilustres exceções, não vejo nem mesmo um rastro de fagulha. Vejo um bocejo em tudo. Ou um savoir-faire forçado em relação à escrita. É certo que cada um tem seu jeito de lidar com cada coisa. Mas sinto falta de partilhar a alegria e mesmo as angústias de um amor em comum.

Ou talvez hoje eu esteja muito sentimental.

De qualquer forma, Cortázar dizia o seguinte, "Com toda a honestidade, declaro que nas poucas vezes em que precisei ficar em tais sanatórios de literatura voltei para a rua com um enorme desejo de tomar vinho num bar olhando as garotas passando nos ônibus. E a cada dia me parece mais lógico e mais necessário ir à literatura - seja na condição de autor, seja na de leitor - como se vai aos encontros mais essenciais da existência, como se vai ao amor e por vezes à morte, sabendo que fazem parte indissolúvel de um todo e que um livro começa e termina muito antes e muito depois da sua primeira e última palavra".

E como é bom isso.



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