21.12.07

CONTO DE NATAL

Há alguns anos escrevi para a ótima e extinta revista Veredas do CCBB um conto de natal. Mais cinco escritores participaram: Luiz Ruffato, Marçal Aquino, Luiz Villela, Rafael Cardoso e Miguel Sanches Neto. É curioso que os textos, inclusive o meu, não são nada otimistas. E mais curioso ainda que eles cairam na rede e são veiculados por aí, como um "belo conto de natal".


Para ler todos os contos:
http://www.paralerepensar.com.br/natal_contos.htm


Porque é.



Andou com pressa sem hora marcada para nada. Virou as esquinas pensando em como era bom virar alguma coisa. Tropeçou num treco qualquer no meio do caminho e só depois viu não se tratar de uma pedra. Os jornais que embrulhavam a pessoa deitada anunciavam uma liquidação imperdível. Ótimo. Tinha mesmo que comprar presentes. Corra, corra, não perca! Imediatamente, correu, embora não soubesse o endereço. Passou por uma mulher linda, um homem lindo, uma criança linda. Pensou: o mundo é bom. E a cidade cintilava com as luzes extras sem nenhuma beleza nem economia.

No meio da multidão, esbarrou em alguém que conhecia. Rapidamente, não se cumprimentaram. Na esquina, desejou felicidades à mocinha que lhe vendeu um sanduíche. Depois, sentiu, de repente, uma alegria. Mal podia esperar a noite. Gostava da comilança, da família reunida. Nessa hora, cresceu um buraco em seu peito que o fez logo pensar em doenças. Em seguida, imaginou curas. É o susto do tempo. De tudo parecer a mesma coisa. E é também a dor desse susto. São as horas corridas que se adiantam tanto, e para quê? Para todos os anos caírem sempre no mesmo dia. Era o que pensava. Só esperava que, se alguma vez morresse, fosse quando estivesse muito, mas muito doente, pois achava morrer saudável um verdadeiro desperdício. Calculava, no futuro, que seria capaz de saborear cada instante. Em pequenas ambições, vislumbrava roçar a carne vida.

Olhando assim, é uma pessoa como outra qualquer. Carregando um desejo como qualquer outro. Arrastando e alimentando o desejo. Deixando ele crescer. Invadir o peito, arrepiar os pêlos, subir à cabeça, desfiar os cabelos. É um perigo querer tanto assim. Talvez seja a época do ano. Você sabe. Aquela que nos faz gastar o dobro do dinheiro que temos. Aquela que nos faz pensar neles. No homem que morreu na cruz e no que anda pelo mundo inteiro, por incrível que pareça, de trenó. Um teve, no peso de sua dor, a dor de todos. O outro, velhinho, vive até hoje num lugar muito longe e frio. Coitados. E ainda têm que agüentar os teus pedidos. Esses desejos que vocês carregam, arrastam, alimentam. Vejam só:

Carregar - Ato de levar ou conduzir uma carga. Tornar sombrio, triste. Tornar mais intenso, mais forte. Exercer pressão sobre.Arrastar - Ato de levar à força. Mover com dificuldade. Rastejar. Falar morosamente. Atrair, trazer atrás de si.Alimentar - Dar alimento a. Nutrir, sustentar, conservar. Incitar, incrementar. Manter, prover.

Então o homem carregou os presentes até em casa, a mulher deixou mais forte o tempero da comida, o avô moveu com dificuldade a própria perna, a avó alimentou as crianças, e a menina comeu tudo, nutrindo a expectativa de enfim, naquele dia, ganhar um presente impossível porque era Natal.

Então o avô conseguiu sustentar com o próprio corpo o peso dos anos, a mulher falou morosamente com o marido, o homem exerceu pressão sobre a esposa, trazendo-a atrás de si até o quarto, a avó rastejou a história mais comprida para as crianças, e o menino deu alimento a cada palavra, achando que naquele dia tudo em casa estava mais calmo e bonito porque era Natal.

Então a menina sustentou que Papai Noel não existia, o menino incrementou achando que aquela barba de algodão era mesmo patética e ridícula, o avô tornou-se sombrio porque perguntava e ninguém respondia, a avó incitou a filha a cuidar dos filhos e da cozinha, a mulher entristeceu, pois ela e o marido às vezes não se entendiam, o homem carregou o medo de perder tudo aquilo que nem tinha tanta certeza assim de que tinha, e todos prometeram evitar discussões naquele dia porque era Natal.

A pele brilhava. Perfeita. Se a levantasse apenas um pouquinho, encontraria a carne branca e macia. Igualmente perfeita. Nesse momento, a boca certamente já estaria transbordando de água. Água de fome e vontade. Uma faca grande e bem afiada faria o corte preciso. Com muita calma, penetraria nela o garfo de enormes dentes e a deitaria languidamente no prato. Ao seu lado, para breve companhia, um pouco de arroz, farofa e maionese. Pronto, perfeito. Agora, a boca aberta já estaria à espera, assim como todas as glândulas e todos os dentes. Se houver sorte e dinheiro, 32 inteiros ou consertados. Mas, antes, outro corte. Menor, mais delicado, mais sensível. Enfim, o garfo, o pequeno, espetaria a sua pressa na carne. E a boca ávida, como em nenhum outro dia, engoliria tudo. Ao seu lado, em silêncio, a sua mulher fazia o mesmo. Ao lado dela, fazia o mesmo a sua filha. E o filho. Na outra ponta, o seu pai, mãe, e pai e mãe dela. Na casa vizinha, dava para ouvir o mesmo. E o mesmo, o mesmo. Alguém riu, todos riram. Alguém disse Feliz Natal, todos repetiram. Alguém estendeu um presente, todos estenderam. Alguém anunciou que ia dormir, dormiram. E o céu deste mundo brilhava, sem reluzir nenhuma estrela.

14.12.07

O PINTINHO



Eu estava na alfa e ia encarar a minha primeira prova. Era de leitura. Ninguém sabia qual história a gente ia ler, a surpresa fazia parte do teste. Também fazia parte a leitura ser para a diretora da escola, não para a nossa professora querida. Sabe-se lá de onde vem esses requintes de tortura, mas era assim. Lembro que estava todo mundo elétrico, a diretora tinha cabelos brancos em cachos de caracol em sua cabeça. Podia parecer um anjo, mas não era. Era uma mulher muito ocupada e muito séria. Para aumentar o requinte da nossa prova-tortura, ficávamos todos na sala, em nossas carteiras até sermos chamados pelo nome. Aí nos levantávamos e seguíamos a nossa professora querida por um corredor que lá pelos meus cinco anos achei enorme. Uma porta azul fechada então era aberta e lá estava: a diretora que de anjo só tinha os cabelos.
Lembro que atravessei o corredor comprido com a mesma ansiedade dos meus amigos. Entrei pela fronteira azul com a mesma expectativa assustada. Mas assim que vi os caracóis brancos, tentei me recompor. Olhei a diretora com desconfiança, sem deixar ela perceber que eu sabia que ela sabia que eu sabia muito bem que de nós duas ali, era eu, sentada na cadeirinha amarela, a única em desvantagem.

E foi quando tirei os olhos da diretora para olhar a prova.

E, por uma dessas mágicas que acontecem e transformam uma coisa em outra, a prova de repente não era mais uma prova: era um livro.

E a diretora sumiu com seus cabelos de caracol branco e com a sua tortura requintada para algum reino longe da porta azul.

Ali, ficou só a história. O Pintinho.

2.12.07

Esta menina

Estava outro dia reescrevendo uma passagem do romance. Eu apagava, escrevia, lia, apagava, tomava café, voltava, lia, escrevia, apagava, tomava banho, voltava, escrevia, escrevia, escrevia escrevia, deixava, via mail, via janela, via tv, voltava, lia, apagava, escrevia, escrevia, foi assim até à noite, quando deixei para ler no dia seguinte a última versão do que fiz. E fui rodopiar pela casa, arrumei almofadas, abri geladeira, fiz o jantar, e enquanto esperava meu marido, peguei assim como quem não quer nada um livro. Assim, distraidamente, peguei o livro que estava mais ao alcance da mão. Meus olhos viram depois dos dedos que eu havia pegado, Albúm de família, da Clarice. (Coincidência? Não fiz a pouco um post com ela?) E meus dedos abriram antes da mente perceber na página do conto A menor mulher do mundo (coincidência? não havia trabalhado há pouco este conto no curso de criação literária?).
Coincidência ou não, reli o conto, que eu acho simplesmente um dos melhores do mundo. Reli no impulso de quem havia pegado o livro meio sem querer, impulso distraído, que trouxe frescor inesperado à leitura de um conto que há anos sei de cor. O prazer que senti foi imenso. Sempre me comovo com este conto, mas desta vez não foi uma comoção, digamos, estética, como a que tive quando trabalhei o conto na aula, foi uma comoção além, e, ao mesmo tempo, aquém, que me re-lançou na cara a leitora-menina que fui e espero sempre ser. Me trouxe este gosto fantástico, que é o de ler um texto que agrade, divirta, comova, perturbe, ultrapasse, surpreenda, mobilize e, até mesmo, desagrade.
Sem dúvida, esta ligação afetiva-imaginária com a leitura me levou a escrever.
E fiquei pensando: será que é esta ligação que tenho -ao ler- que busco -ao escrever?
Será que é por isso que só me dou satisfeita com uma página quando, de certa forma, ela me perturba ou me comove, ou me surpreende?
(É uma questão pessoal, sabe, que produza esses efeitos em mim, quem escreve, sem pretensão nenhuma de escrever uma página "surpreendente", "comovente", "perturbadora" para outra pessoa, o leitor. Sim, que fique claro que a cabeça até pode voar, mas os pés estão no chão, os dedos estalam e a coluna dói).
Então:
Será que o escritor está sempre tentando resgatar, ou re-criar, ao escrever a sua história, a paixão que sente ao ler?
Como se sempre estivéssemos estendendo a mão para os grandes impactos com a leitura que tivemos, sempre buscando a fonte que despertou aquela sensação primeira: o amor pelos livros.
Neste ano, principalmente, uma coisa muito bela aconteceu: reencontrei a menina apaixonada por histórias que eu fui ao lembrar por acaso um episódio de quando me alfabetizei. Desde então, tenho sentido que escrevo com mais... ... paixão?
... com maior desligamento ou despreocupação da escrita como "profissão", e de todo o seu kit?
Talvez seja isso, não sei. Sei que agora uma brisa mais fresca corre por aqui... e nunca mais escrevi de outro jeito, a não ser de mãos dadas com esta menina.